A JANELA DE MATISSE,  de  ÂNGELA DE ALMEIDA por ELISA COSTA PINTO

I

Apesar da robustez da capa e da cuidada consistência do objecto, tudo neste livro nos aconselha a entrar com cautela e a prestar atenção máxima aos sinais. Na verdade, só é possível ler com deleite este livro cuidando, amorosamente, de todos os sinais, e eles são tantos.

Muito classicamente, comecemos pelo título que, afigurando-se um guia de leitura global, rapidamente se revela um quebra-cabeças. O que quer a autora sugerir-nos quando acolhe os seus enigmáticos, fortíssimos ainda que subtis poemas, num lugar que, pela sua natureza múltipla, abriga o dentro ou o fora, a protecção do perto ou a incomensurabilidade do longe, a luz do amanhecer de promessas ou a escuridão assustadora do negro nocturno? Sim, porque a janela de Matisse são muitas janelas, fechadas e abertas, passagens entre o interior e o exterior, conforto e incerteza, silêncio ou música, vazio ou habitação.

Não resisto à tentação de passar em revista mental algumas das dezenas de janelas que este artista pintou, quase todas fauvemente festivas, claras ou coloridas, habitadas ou à espera de quem venha debruçar-se no parapeito das horas lentas. E, estranhamente, nenhuma parece ajustar-se a estes poemas. De repente, apercebo-me de que, depois de uma primeira e rápida passagem pelo livro da Ângela, antes de iniciar a saborosa e vagarosa leitura, poema a poema, uma janela de Matisse se me impõe, a mais abstrata, a mais minimalista e vazia, a mais sombria. É um rectângulo aberto sobre a noite de Collioure, que o mesmo é dizer sobre o negro profundo do Mediterrâneo. Hesito em trazê-la para aqui, por recear que a escolha seja ditada por uma preferência pessoal muito antiga ou se foram realmente estes poemas que me encaminharam para a misteriosa janela. Acreditando na segunda hipótese, é a sua imagem que me acompanhará neste mergulho nos poemas da Ângela, é sustentada no seu parapeito que provurarei interpretar o negro fértil à imaginação. Afinal, toda a verdadeira poesia é aberta à interpretação e esta Janela da Ângela é mesmo poesia verdadeira, que não se deixa fechar numa só leitura.

Para já, limito-me a registar a coincidência da presença sugerida ou explícita do Mediterrâneo, nestes poemas, como em muitas das janelas de Matisse, que viveu a maior parte da sua vida junto a esse mar antiquíssimo, nossa matriz amniótica  e literária, e franqueio as portadas do livro, para tentar descobrir-lhe alguns segredos, os fornecedores de um mapa que me/nos salve do afogamento.

Apresentação em Lisboa (Professora Elisa Costa Pinto e Poeta Ângela de Almeida)

II

A VOZ SINGULAR DOS POEMAS

O livro está organizado em duas secções, a primeira sob o signo de duas epígrafes que haverão de se revelar importantes marcas no mapa de leitura; a segunda, genericamente intitulada “Outros Poemas”.

Se a primeira epígrafe, da Ode I.11 de Horácio (aquela que mais directamente apela ao carpe diem) aconselha à não indagação do futuro, escrito que está o destino, a segunda, um verso do soneto “Ah! Minha Dinamene!” de Camões, remete para a tragédia do naufrágio e a consequente perda do ser amado. Passado de subtracção, futuro interdito, resta o presente, talvez um vislumbre de janela sobre o nada ou, como veremos, a busca do verbo até à poesia, voo das aves, sustentado pelo sopro aéreo, imaterial das palavras.

Estão traçadas as grandes linhas que, subtilmente, irão tecer e desfazer um tecido tão longo e tão incerto como o de Penélope.

O sujeito poético é claro e ao mesmo tempo sibilino desde os primeiros versos:

“não atravessei o mar da nossa biografia

pendurada num cortejo infindável

de alfabetos retidos na encostas da sede”

Ao longo dos poemas que se seguem, com o mar sempre no centro da rota, esta voz na 1.ª pessoa (eu) em direcção a um tu que é sobretudo ausência e memória em construção (“ainda não recebi a memória do que fomos”, p.13; “a rememoração do mar em manhãs esguias”, p. 15; “para lá da memória de tanto”; “voz na memória da chuva”.p31, “ao encontro do que fomos”, p.32 , “memória de tanto mar”p.39).

Mais ainda, sucedem-se os versos que, delicadamente, nos tocam no ombro para pararmos, emocionados, diante da perda irremediável do sujeito, na travessia daquele mar, tanto mar. Lembra:

os peixes voando nas paredes do caos

e eu

trémula visão do dia rodopiando nas mãos

vibrantes e entregues à emersão

desta subtil incerteza

assim reclinada sobre o lento amanhecer

do silêncio na escassa penumbra

da voz que aqui me trouxep.15

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ou

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“ainda a praia derramada em sangue

os pássaros velando um epílogo” p.15

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alamedas que te aguardam para / lá da memória de tanto   ó tanto mar p19

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“o caminho /oculto até à pedra onde tu / permaneces     há tanto tempo” p21

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“como se subitamente um navio

me avistasse e me levasse ao centro

desse mar onde habitas inteiro e interno

entre os peixes que agora me chamam” p21

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Enfim:

nenhum mar sobreviveu ao naufrágio da comoção” p40

Colhendo as expressões dispersas como quem colhe destroços de um navio desfeito contra as rochas e reunindo os fragmentos que se nos vão colando aos olhos leitores, eis que uma narrativa começa a insinuar-se, protanonizada pela voz que escutamos nos poemas. Pressentimo-la, é talvez uma mulher que, na travessia do mar, perdeu o seu amor, aquele que mora “inteiro e interno entre os peixes que agora” a chamam.

Talvez comecemos a vê-la, mulher do êxodo já no exílio do sul da Europa, olhando o mar. Na janela de Matisse?

Um momento bonito com casa cheia em Lisboa

III

A TRAGÉDIA COLECTIVA DO MEDITERRÂNEO

Acontece que a estreiteza do individual, por muito intenso e fundo que seja, rapidamente se revela insuficiente, porque cedo percebemos que ela se dilui na água e no sal de um colectivo que partilha, dolorosamente, a perda e a rememoração. E essa percepção insinua-se desde o poema inicial a colocar nos nossos ouvidos a ideia de diversidade de um “cortejo infindável de alfabetos”. E depois, um soco, aquele verso que não nos deixa dúvidas “ainda corre o rio que une Dachau a Lampedusa”, a dor humana e a morte massiva suspirada em palavras semeadas a salgar de dor os versos, incapazes ainda da composição de um poema épico-trágico que honre os mortos. Palavras como suplício, tormento, martírio, destroços, gemidos, derrocada, desamparo, medo, desolação, êxodo, exílio, inquietação, solidão, miséria, palavras ainda a escorrer sal e água, trémulas e balbuciantes, nem sabem como chegaram às margens da dor.       

É impossível não ler, sobre a camada de leitura de uma tragédia amorosa a dois, uma outra camada, mais vasta, imensa, a tragédia que o nome Lampedusa nos revela em toda a sua horrível persistência. É perante os náufragos do Mediterrãneo que esta poesia nos coloca, intensamente, não adianta o refúgio numa história de amor infeliz.

Este é o mar que acumula tragédias, desde Aquiles e Ulisses, o mar onde o voo de Ícaro se afundou, agora sem os braços de nenhuma deusa, só a sombra negra da ira de Baco a conjecturar os ardis da morte.

o olhar de Aquiles sobre a biografia dum outro mar

o naufrágio do mediterrâneo nos braços de Tétis

o cortejo mudo dos pássaros ao encontro

do que fomos para lá deste êxodo que nos ampara

a dor do poema na esquina dum débil adeus” p32

A confirmação chega-nos com o último poema desta secção, justamente intitulado “Mediterrâneo”, o “último mar”, e a voz que diz

“sobra-nos a miséria humana no convés

da noite bebendo o sangue dum navio destroçado

e a confissão duma outra biografia a nascer

no céu do poema       casa líquida no imenso

clarão do nome

mar promordial” p51

Lançamento em Lisboa.

IV

A VOZ DA POESIA

Então, há futuro?, Há “uma outra biografia a nascer”? Como olhar o mar na limpidez da memória resgatada para uma nova biografia? Como “escalar o sal” se não há pedra de Sísifo? Não há pedra, mas há a voz, a palavra que começa por ser “apenas o nome do mar” e que, poema a poema,  (re)nasce em verso. É preciso libertar os “alfabetos retidos”, “as palavras reprimidas na língua da sede” e com “língua da dor”, abrir “a janela afónica ante o declínio das palavras”. Assim, começará o voo das “aves soletrando um clarão na afonia do tempo sobre os destroços da voz”,  e erguer-se-á “a música das ervas na asa do poema até ao céu da palavra sílaba a sílaba”. Será plantado “um verso que habite os crisântemos”, e erguido “o verso ileso,e íntegro da palavra, o mastro do poema”.

A poesia não ressuscita os mortos, mas resgata a alma dos sobreviventes. Preservar a memória e reconfigurar a dor pela transfiguração poética, da palavra ou outra, é o que poderemos fazer com os cacos dos vasos que abrigavam as palavras e se quebraram na travessia. Não adianta olhar para trás com uma dor sem apaziguamento, porque

Nenhuma  estação resgatará Itaca

Ulisses não passará neste mar

nem mesmo no mar que guardámos

na omissão duma rota entre as labaredas ardendo”.p16

Mesmo adiados e suspensos, é possível subir a erma encosta, “escalar o sal da inquietação lançando / a música das ervas na asa do poema”, num rasgo de ave que a desprender-se da janela de Matisse, solte uns versos de Rilke (que aqui trago em tradução de Maria Gabriela Llansol, ele que também gostava de janelas):

É verdade, janela, que és a forma

simplicíssima da nossa geometria,

e que, sem tensão, circunscreves

a amplidão da nossa vida?

Quem responderá serão estes belíssimos poemas da Ângela, gravados com a sua subtil caligrafia de pássaro.  

V

OUTROS POEMAS

De acordo com a leitura que venho fazendo deste livro, faz-me sentido tratar à parte a segunda secção – Outros Poemas – que reúne cinco composições que sinto portadoras de uma diferente atmosfera poética que me parece ter, no caso dos 3 primeiros, uma genealogia simultaneamente triste e solar, arrisco a dizer herdeira de Eugénio de Adrade.

O primeiro, “mãe na incerta espera de cada sílaba” é uma carta de kW a sua mãe, CW, (escrita em Março de 2020, o primeiro mês da pandemia, data que poderemos estender aos restantes). É, assim o leio, uma revisitação do “Poema à  mãe”, quer na dolorosa cisão mãe/filho/a que o crescimento comporta, quer mesmo no tom lírico, doloroso, metafóricamente elemental, a nomear a perda da infância. A grande diferença reside no apelo final, inexistente em Eugénio de Andrade.

“a ti entrego a incerteza

de um vocábulo perdido

para que o resgates

e o devolvas salvo

aos meus dias”. p63

Seguem-se dois poemas de amor em queda, vivido na plenitude da natureza e aqui transmitido através de metáforas belíssimas nas quais, mais uma vez, ecoa a voz poética de Eugénio de Andrade, nas mãos e nos frutos do corpo e da poesia.  

O 4º poema, “Ricardo Reis”, estabelece uma interessantíssima circularidade, ao ligar-se à epígrafe que abre o livro. É a expressão do desejo horaciano de um carpe diem perdido, na consciência da sua impossibilidade.

“Mestre

quando a querra terminar

(…)

deixaremos que o dia passe

leve

e sem pesar

entregando a agonia aos deuses

contemplando as águas

nas cordas de violinos

azuis

e breves   ó tão breves

ainda mais breves que o dia. p79

Finalmente, o belíssimo texto que encerra o livro, unifica, definitivamente, a voz poética e o poema, arte poética num movimento ascencional do corpo e das palavras, asas a preparar a restauração da caligrafia dos pássaros sobre a catástrofe de um mundo ameaçada, de que a tragédia do Mediterrâneo, desgraçadamente, sendo real e permanente, é a infindável metáfora e metonímia..

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Como nota final, gostaria de referir aqui quatro mulheres que mergulharam fundo no tema da tragédia do Mediterrâneo e criaram obras geniais. São elas:

  • Julieta Monginho, no romance ‘Um Muro no Meio do Caminho’ 2018
  • Hélia Correia, no romance ‘Um Bailarino na Batalha’ 2018
  • Graça Morais, na exposição ‘Metamorfoses’ 2019
  • Ana Luísa Amaral, poemas dos seus livros ‘What’s in a Name’ e ‘Ágora’,2017-19

A elas juntarei, agora, Ângela Almeida, com ‘A Janela de Matisse’, 2024.

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Elisa Costa Pinto

Lisboa, Cinema Europa. 23 de Outubro de 2024

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