
Boa tarde a todos, exmo. Senhores e senhoras do protocolo observado, caro amigo Diniz Borges que me honrou muito com este convite para fazer a apresentação, nesta cidade e neste salão nobre de um belíssimo livro bilingue em português em inglês de agradável manuseio quer pela sua aparência, peso ou formato e que tem por título “Contos Populares Açoriano – Terceira e São Jorge” de autoria de um ilustre filho desta terra o prestigiado Doutor Manuel da Costa Fontes e do seu colega antropólogo, o Doutor Paulo Jorge Correia, oriundo de Faro, também ele investigador na área das literaturas orais.
Sinto-me três vezes honrada por ter sido convidada para apresentar este livro e explico porquê: a primeira das razões é porque conheci o Doutor Manuel da Costa Fontes no âmbito das minhas pesquisas sobre o livro “Altares da Memória” e sendo ele um altarense acedeu, de imediato, em que eu integrasse algumas das suas recolhas no livro, além, de ter feito uma crítica muito simpática que figura na contracapa. A segunda razão é porque antes, de conhecer o homem conhecia o trabalho. Um trabalho meritório e consistente na área da recolha da oralidade, essa tarefa que tem por finalidade combater o esquecimento da memória. Uma oralidade sem registo, nos tempos que correm, é um rio sem barragem. É um rio que se imiscui no mar e que se salga na trapaça dos tempos. Esta inerência da cultura imaterial não é um desígnio fatal. O combate a essa inerência faz-se, em primeiro lugar, na oralidade que passava e reitero que passava de geração em geração. Atualmente as gerações mais novas não tem tempo de as ouvir nem os mais velhos se permitem, nos cansaços, de as dizer. Um corte geracional suplantado pelas novas tecnologias são o nosso calcanhar de Aquiles, a nossa ameaça que, em boa hora é combatida no registo da palavra, no registo do papel e do objeto que é o livro que continua a concorrer com as faltas de bateria e com a insuficiências técnicas das avarias dos tablets e dos kobo’s. Um livro é sempre um livro, ele abre-se e dá-se a nós sem grandes exigências. A terceira e última razão é a escolha ter partido de um amigo comum: Diniz Borges que tem sido o arauto da cultura portuguesa na diáspora, concedeu-me a honra de aqui estar aqui com ele e a confiar nas minhas palavras que só poderiam enaltecer esta iniciativa editorial da Câmara Municipal de Angra do Heroísmo, da Letras Lavadas e da Bruma Publications.

Voltando aos autores e apesar dos seus trabalhos serem publicamente reconhecidos não seria correto da minha parte suplantar este aspeto. Paulo Jorge Correia nascido em Faro no ano de 1966 é antropólogo e investigador na área da Literatura de tradição oral. Tem-se dedicado particularmente aos contos e lendas. É coautor do Catálogo dos Contos Tradicionais Portugueses, publicado em 2015. Tem feito conferência escrito artigos e recensões críticas e editado livros sobre contos e lendas em Portugal e no estrangeiro bem como trabalhos continuados de classificação para arquivos, bases de dados online, coleções livros e catálogos. Foi bolseiro de investigação da Fundação Para a Ciência e Tecnologia e atualmente é coordenador do Centro de Estudos Ataíde Oliveira da Universidade do Algarve. Relativamente a Manuel da Costa Fontes, nasceu na freguesia dos Altares, no ano de 1945 e emigrou para os Estados Unidos da América em 1961. Tirou o quarto ano no Liceu de Angra e frequentou o Modesto Junior College (A.A., 1964). Alistou-se nos Fuzileiros Navais Americanos (1964-1967), passou um ano no Vietname e completou o seu serviço militar com o grau de Sargento. Frequentou o Stanislaus State College (B.A., 1969), University of California, Berkeley (M.A., 1972), e University of California, Los Angeles, onde se doutorou em Línguas e Literaturas Hispânicas (Ph.D., 1975). Foi professor catedrático de espanhol e português, na Kent State University (1975-2008), onde foi premiado com um Distinguished Scholar Award (1997) e doze Summer e Academic Year Research Appointments. O National Endowment for the Humanities concedeu-lhe Fellowships for Individual Study and Research em duas ocasiões (1978, 1980- 1981). A John Simon Guggenheim Memorial Foundation também o distinguiu com uma bolsa (1984-1985). Especializa-se nas Literaturas Ibéricas da Idade Média e do Renascimento, tem dedicado parte da sua vida à tradição oral portuguesa na América do Norte, assim como nos Açores (São Jorge e Terceira) e em trás os montes. Em 1997 Kent State University agraciou-o com um Distinguished scholar award.
Mas recentremo-nos novamente no livro que é a razão que aqui me traz. Com a chancela da Letras Lavadas apresenta capa e sobrecapa ligeiramente distintas uma da outra, facto que admiro com especial relevância. Nessa senda, gostaria de ressaltar a qualidade dos capistas que trabalham com esta editora em particular, promovendo a imagem gráfica e essencial para que o livro, per si, mesmo antes de lido chame a atenção nos escaparates. As 504 páginas que o compõe, bem como o formato diferenciado, não fazem dele um objeto pesado e de difícil manuseio. Bem pelo contrário: as opções por um papel menos lustroso e de menor gramagem dotam-no de um tato agradável, um cheiro característico e de um peso aceitável.

Passadas que estão as formalidades técnicas e as folhas do rosto, detenho-me no In memoriam a Mos. Inocêncio Enes, seguido da fotografia que lhe enviei a seu pedido, aquando da publicação do livro sobre os Altares. O padre Inocêncio Enes povoara o ainda povoa o imaginário de muitos altarenses devido aos seus mais de 60 anos de sacerdócio, catequização, medicina e etnografia exercida numa freguesia remota, periférica a noroeste da ilha Terceira. Lá está ele com seu porte altivo nos jardins do fabuloso Passal que por ele sonhado e concretizado e até mesmo custeado, em parte, a suas expensas. Como sócio do Instituto histórico da Ilha Terceira e na senda dos etnógrafos da primeira metade do século XX, tais como um Luis da Silva Ribeiro ou um Bernardo Leite Ataíde, Inocêncio Enes teria sido o autor de muitas recolhas do património imaterial daquela freguesia, com destaque para os contos, lendas, tradições, orações, receituário, lenga lengas, adágios, etc. Este reconhecimento é referido nas últimas linhas da introdução, mais precisamente na página 20 onde é citado: “foi quem primeiro documentou a tradição oral da freguesia. Fê-lo a pedido do IHIT, publicando vários artigos no Boletim daquela organização, a qual o elegeu como sócio. (…) Era um sacerdote exemplar, e não é nada menos do que justo dedicar este livro à sua memória. Além de prover as necessidades espirituais da paróquia, numa época em que o serviço de saúde nas freguesias era muito limitado”. Manuel da Costa Fontes recorda da sua cabeça rachada e consertada, por este pároco com gatos, os mesmos que se consertavam tigelas, salgueiras e alguidares. Também a ele devo muito da minha recolha. Este in memoriam, presumo, em jeito de agradecimento é justo e é de reconhecimento público, independentemente das ideologias marcadas por um Estado Novo à época. Resta apenas referir que este clique fotográfico é de autoria do saudoso fotógrafo Joaquim Correia Parreira. A esta seguem-se mais duas fotografias também elas nos Altares, todas elas dos Altares, quer seja na sua casa, com sua esposa e parentes, cuja vista do quintal se ergue a igreja neogótica, quer seja a de uma procissão de setembro em honra de Nossa Senhora de Lurdes, onde aparece o São Roque, patrono, no andor a passar debaixo da iluminação cujos A’s centreiam as luminárias em cornucópia.
Passada esta descrição, deparamo-nos logo a seguir com uma bibliografia de dez páginas que dão esteira ao livro, como se os autores, inclusive referenciados na mesma, necessitassem da aprovação da oralidade, confrontando-a com a documentação livresca, sobretudo para efeitos de classificação.

Detendo-nos no corpo do livro verificamos que há uma certa distinção de contos: os de animais, os contos maravilhosos, os religiosos, os realistas, os jocosos ou anedóticos, formulísticos, os não classificados e em exemplar único, o conto do Gigante (Diabo) Estúpido em categoria única. De um modo quantitativo, verificamos que os contos maravilhosos e os jocosos são os que ocupam uma maior parte do livro. Não poderia deixar de destacar o conto do “Touro Azul” que ouvi embevecidamente na minha infância, contando pelo meu tio, no meio das tábuas e dos farelos da oficina, enquanto acalentava gatos e cachorros desmamados. Esse conto, que nunca me foi terminado, era feito render para gáudio de meu tio que me lia as expressões de medo e espanto, mergulhados numa fantasia que só eu própria imaginava por entre as suas palavras. Mal sabia eu que experienciava a estética do sublime, enquanto ferramenta filosófica que permeia o belo e o choque. Foi este livro que fez desmoronar a minha fantasia, ao terminar, finalmente o conto do touro azul assumido nas meras sete páginas que eu julgara que se multiplicariam por setenta. Afinal o touro azul era um príncipe encantado, e assim acabou o meu tormento o meu desencanto, mas mesmo assim, não terminou a minha ansiedade plasmada no meu pensamento. O conto do meu tio era infinito. Os parágrafos foram acrescentados com tal mestria que eu só queria saber do touro azul em suas desventuras. Já não era da época dos príncipes encantados, sabia que a Alvarinha era rapariga para ser dona de si mesma, nascidas que somos depois da madrugada de abril.
Entre muitos outros contos que dão aso à imaginação, interessante também é referir que os mesmo encontram-se, na sua quase totalidade classificados, ou seja com referências análogas a outros contos, e a outros países, tais como o Brasil, Espanha, Moçambique, Cabo Verde, América Espanhola, Angola, São Tomé e Príncipe, Goa, Timor Leste, Guiné Bissau etc.
Relativamente aos informantes, a estes subdividem-se pelas ilhas da Terceira, com dez e São Jorge, com onze. Dos dez informantes da ilha Terceira, seis são oriundos da freguesia dos Altares, quatro mulheres, e dois homens, com idades compreendidas entre os 28 e os 72 anos se bem que o informante mais velho é da ilha de São Jorge, com a idade de 80 anos à data de 1977. Aliás é o ano de 1977 é o de toda a recolha.
Relativamente ao vocabulário utilizado nos contos verificamos a opção por ruralismos, regionalismos, arcaísmo e calão que depois são catalogados em capítulo próprio com a menção à respetiva palavra escrita na ortografia correta. Vejamos como exemplo as palavras adiente, aguindar, ámena, augua, bassoura, brabo, bum, corsário, d’alcateia, dobaixo, dromir, havera, impossivle, ladrães, macigueira, prantar, prigatório, roipa, soiber, sonâmblio, sóteo, triatos, vesita, etc. Perante estas sonoridades até parece que estamos a ouvir uma altarense. Os tipos e os índices cumulativos aqui elencados obedecem às normas do registo da oralidade, pelo que a recolha efetuada na diáspora faz o alargamento do arquipélago dos Açores, como se de uma décima ilha se tratasse. Segundo o texto de Diniz Borges publicado na badana da sobrecapa, este refere que “recolher e publicar os contos populares dos Açores é de extrema importância para a preservação da identidade cultural e histórica da região e da sua diáspora. Estes contos transmitidos oralmente, de geração em geração, encapsulam as tradições, crenças e valores das comunidades, refletindo as suas experiências e as suas interpretações do mundo”. Efetivamente é através deste tipo de registos que se garante a preservação do património imaterial dos Açores, oferecendo às gerações futuras uma compreensão profunda das suas raízes, fortalecendo os laços entre a comunidade e emigrante e a comunidade autóctone, numa espécie de continuidade territorial que mais não é do que uma continuidade cultural. Em suma e para finalizar, podemos afirmar que em muitos aspetos da cultura imaterial, a mais intocável permanece na nossa diáspora. Encapsulando as tradições e a oralidade, mantém-se mais pura a nossa ancestralidade e isso podemos observar nas várias manifestações tais como no folclore, nas danças de Carnaval e nas rainhas das festas que despicam capas e bordados, excetuando os casos politizados. Portanto o impacto deste tipo de obras é gigantesco, sobretudo nos tempos que correm. A oralidade perde-se nos meandros dos instantâneos tecnológicos e nas inclinações dos nossos pescoços, que sacralizam os nossos aparelhos informáticos. Onde estão os contos à luz das velas, que ouvíamos quando a EDA rebentava os capilares numa noite de mais aragem? Onde estão os nossos idosos que os contavam? Onde está a minha tia-avó Amélia que, já viúva, transfigurava-se em tempo para nós, para nos levar numa viagem a meio de rezas, de ganchos de cabelo e de roupas de bonecas? Toda uma oralidade que acompanhava um fazer, uma desfolhada, um anteceder de terço, uma matança ou mais raramente um intervalo da vida onde nos espantávamos com o nada e onde, muitas vezes, se entreteram barrigas vazias na hora do deitar.
Contar um conto é acrescentar tempo a outras vidas, é combater a solidão e sobretudo, adiar a nossa volatilidade.
Disse!
Muito obrigada e bem hajam
7 de novembro de 2024
(Texto apresentado pela Doutora Assunção Melo nos Paços do Concelho de Angra do Heroísmo.)
Fotos do evento por JEdgardo Vieira.















