
A LIÇAO DA JOANA

− Ensinou-a a andar de bicicleta, lembra-se? Claro que sim, todos nos lembramos bem.
A Joana ia fazer quatro anos, a Catarina estava quase a nascer e os avós não podiam perder dois eventos tão importantes. Só havia uma solução: voar de Lisboa até Monterey, na Califórnia, custasse o que custasse!
E de facto custou uma mala cheia de prendas, desaparecida sem deixar rasto na trapalhada que se seguiu à desregulamentação da aviação comercial americana e que culminou com a greve e paragem total da United Airlines durante quase dois meses.
Mas como a menina não podia ficar sem uma boa prenda, os avós foram comprar uma bicicleta. E claro, uma bicicleta para durar, até porque o pai também tinha aprendido numa roda 26. A Joana, que estava num percentil elevado, parecia um mosquito em cima dela. Foi preciso instalar uns grossos calços de madeira para chegar aos pedais!
E como ter uma “espileca” (era assim que a Joana apelidava a bicicleta) e não saber andar nela não fazia sentido, lá foram, avô1 e neta, treinar para o pátio da La Mesa Elementary School, perto da nossa casa. E sem rodinhas, só com o avô a correr atrás da “espileca”.
Corria tudo muito bem porque o espaço era amplo e a Joana tinha um bom equilíbrio. A “espileca” rolava, mais ou menos a direito, e o avô e a neta sentiam-se cada vez mais entusiasmados.
Não fosse um poste solitário, plantado no meio de nada, e a manhã não teria história. Mas a lei da atracção universal aplicada ao pátio da escola de La Mesa fez com que a “espileca” se dirigisse para o poste solitário, contra todas as probabilidades e sem fazer caso dos gritos e dos esforços do avô!
Resultado: um grande trambolhão e a perda de um incisivo central superior!
Mas apesar do susto e do berreiro, o avô não hesitou. Foi logo lavar a boca da neta no repuxo de água de um bebedouro e, com alívio, viu cair o dentinho. Voltou a sentá-la no alto da “espileca” e o treino continuou, como se nada se tivesse passado!
Não sei o que os manuais de pedagogia infantil dizem sobre estas situações, mas sei que a Joana voltou para casa a conduzir a “espileca”, sem ajuda, segura e orgulhosa da sua nova capacidade e com um troféu na mãozita: o dente de leite cujo buraco só foi preenchido um bom par de anos mais tarde!

Esta foi uma das muitas cumplicidades entre o avô Aníbal e a neta Joana. Por isso, ao ver esta fotografia, senti vontade de perguntar: − Ensinou-a a andar de bicicleta, lembra-se?
Jorge Martins Bettencourt
Julho 2014
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1 Aníbal Jardim Bettencourt, nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo, Moçambique, em 6 de Junho de 1924.Casado com Maria da Conceição Martins Bettencourt, tiveram dois filhos, seis netos e doze bisnetos. Faleceu em 16 de Setembro de 2015, em Cascais.
