A obsessão açoriana de José Enes

Na escrita de José Enes, é a faceta de filósofo que sobressai e no-lo impõe como figura ímpar no espaço intelectual lusitano, como aos poucos tem vindo a ser reconhecido por estudiosos da história cultural portuguesa. Veja-se, por exemplo, Miguel Real no seu José Enes – Poesia, Açores e Filosofia (2009). Curiosamente, esse estudo, como bem o indica o título, não se limita à dimensão filosófica da obra do autor dos textos do presente volume. Isso fê-lo num ensaio incluído no seu O Pensamento Português Contemporâneo – 1890-2010. O Labirinto da Razão e a Fome de Deus (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2011). No primeiro escrito, Miguel Real traça o perfil intelectual de José Enes contra o pano de fundo do que foi uma quase obsessão na sua vida: os seus Açores. Não que estivesse limitado ao espaço arquipelágico, nem mesmo quando nele viveu. Longe disso. Bem cedo José Enes revelou interesses universais que transcendiam, para bem alto e longe, os horizontes ilhéus, e disso surgem sinais logo no primeiro dos seus ensaios reunidos nesta coletânea, datado de 1953 e, significativamente, intitulado “Universalidade e literatura”. Como todos sabemos, o nosso autor embrenhou-se – e de que maneira! – na estética, na epistemologia e na metafísica, embora tendo sempre sido um homem de pés fincados na terra, no chão das suas amadas ilhas açorianas – se bem que pensadas, de forma consistente, no contexto português. José Enes empenhou-se afincadamente na compreensão histórico-cultural – identitária, se preferirem – dos Açores, contudo olhou para eles sentindo-os sempre parte de um todo nacional porque, do seu ponto de vista, as ilhas palmilharam um rumo histórico umbilicalmente ligado ao do continente luso.

Manifestou-se bem cedo essa sua preocupação com os Açores, como aliás fica desde logo patente nesse referido primeiro texto deste livro. A criação do Instituto Açoriano de Cultura e, depois, a iniciativa das famosas Semanas de Estudo dos Açores, foram apenas uma mais visível afloração desse profundo interesse e preocupação com o destino do arquipélago. José Enes intuiu cedo que era preciso dialogar com a elite cultural açoriana porque ela seria uma importante aliada por onde deveria começar a atividade de conscientização acerca do que ele considerava uma urgência: o desenvolvimento dos Açores nas suas diversas facetas, desde o humano em geral, mas incluindo até – e forçosamente – o económico. Daí que, logo após o seu regresso dos estudos em Roma, se tenha empenhado em estabelecer diálogo com os literatos, que na altura eram as forças intervenientes mais atentas ou mais capazes de dedicar atenção à problemática que motivava José Enes.

O conjunto de textos reunidos no presente volume constitui, na sua maior parte, as primícias da produção intelectual de José Enes, se excetuarmos os poemas escritos durante os seus anos de estudo no estrangeiro e já reunidos no volume Obra Poética[1].

A ordenação dos artigos não é cronológica porque a intenção aqui não é fazer a biografia intelectual de José Enes, mas tão-só proporcionar aos leitores uma oportunidade de se aperceberem da dimensão do seu engajamento no diálogo com os literatos e os autores açorianos que direta ou indiretamente refletiram a realidade insular. Daí que, logo após o curto texto inicial, se siga um precioso ensaio escrito já quando José Enes era Reitor da Universidade dos Açores. Assim, a leitura dos textos subsequentes, ainda que cronologicamente anteriores, será iluminada pela visão mais alargada patente nesse ensaio – “A insularidade como matriz de identificação literária”. Ao lançar-se na leitura dos textos das décadas de 50 e 60, o leitor aperceber-se-á sem dificuldade do caráter seminal desses escritos primordiais. Idem para o conjunto de curtas recensões críticas a livros com que o volume encerra, muitos hoje nem sequer referidos pelos autores açorianos mais atentos à história literária e cultural açoriana e ao seu cânone. Em conversas com a Professora Fernanda Enes, que hesitou sobre a importância de incluí-los, votámos sempre pela afirmativa, visto contribuírem para reforçar a faceta açoriana do retrato de José Enes. Haviam sido já significativos no momento da sua primeira publicação, uma vez que José Enes, sempre atento ao que se ia produzindo no meio insular, não deixava passar a oportunidade de intervir chamando a atenção do público para certos livros e o seu papel de contribuintes na abertura do espaço ilhéu ao mundo das letras. São textos curtos – alguns menores mesmos – mas nem assim deixam de conter a marca de um olhar arguto, de um crítico empático, mas nunca subserviente, de um pensador e escritor que a rodagem do tempo só ajudará a valorizar.

Detenhamo-nos um pouco nos ensaios de maior fôlego que abrem a coletânea, imediatamente a seguir ao supracitado “A insularidade como matriz de identificação literária”. Esse, como acima sugerimos, dá o tom e, de certo modo, introduz os leitores à base do pensamento enesiano a propósito do que o autor apelida de uma tentativa de “teorização das literaturas insulares a partir dum conceito” por ele posteriormente definido.

Não sendo de modo algum nossa intenção apresentar nesta simples nota de abertura um escrutínio — por curto e despretensioso que fosse — de cada artigo desta coletânea, não podemos deixar de tecer algumas considerações gerais sobre um grupo de seis textos dedicados a Vitorino Nemésio. Justifica-se tal opção por duas razões em particular: a primeira tem a ver com a dimensão e profundidade que o estudo desse escritor merece a José Enes, e a segunda prende-se com o facto de que, em nossa opinião, tudo o que se nos oferece dizer sobre o rigoroso método de trabalho neste conjunto de textos poderia, em diferentes graus, ser dito sobre qualquer dos restantes escritos do livro. 

José Enes pratica um tipo de análise literária que, infelizmente, caiu em desuso a partir do último quartel do século passado mas que, como atrás afirmamos, estamos convictos de que “a rodagem do tempo só ajudará a valorizar” ou, talvez melhor dizendo, a revalorizar. Isso porque o seu objetivo principal foi, citando o próprio autor, estudar “processos criadores de beleza” na arte literária; por outras palavras (e ainda recorrendo ao discurso de José Enes), a sua intenção foi examinar “o conteúdo estético e os processos de realização artística […] e pronunciar sobre eles um juízo valorativo”.

Ora essa parece, do nosso ponto de vista, ser a principal função dum crítico de arte, em especial se entendermos os conceitos de beleza e de criação da mesma num sentido abrangente onde cabem dimensões éticas, cognitivas e emocionais.

Por isso acreditamos que, mais tarde ou mais cedo, os estudos literários retomarão a análise detalhada dos textos, de que se têm arredado de diversas formas. Naturalmente que os métodos utilizados assumirão novos contornos, mas estamos em crer que muito terão a beneficiar da leitura de estudiosos do cariz de José Enes.

Especifiquemos então os traços mais característicos do tipo de exegese literária posta em exercício neste livro.

Vitorino Nemésio, já que é o seu caso que escolhemos tomar aqui como paradigma, é estudado no contexto da sua época, no contexto de elementos marcantes da sua biografia, no contexto da literatura europeia do tempo e, muito particularmente, no contexto da(s) arte(s) poética(s) enunciadas pelo próprio escritor, nomeadamente em La Voyelle Promise e, noutras, elaborada para o livro imediato, O Bicho Harmonioso. Dito doutro modo, José Enes, acreditando ter encontrado naquele escritor, “a interpretação do Povo Açoriano […] a nossa voz […] a nossa consciência coletiva”, fez questão de examinar a sua bio-bibliografia tão exaustivamente quanto lhe foi possível. Refletiu sobre a sua obra escrita (não apenas literária mas também ensaística) desde a adolescência até ao momento da jubilação académica, documentando afirmações com referências a textos e análise respetiva; integrou essa obra na produção artística da época em que Nemésio viveu; comentou sobre o trabalho doutros críticos e exegetas da sua arte; enfatizou as suas dimensões didática, filosófica e de clássico humanista; realçou a polivalência de Nemésio como poeta, contista, romancista, ensaísta, jornalista, historiador, dramaturgo e professor. Em suma, este conjunto de seis artigos poderia facilmente ser reelaborado como uma monografia sobre Vitorino Nemésio.

Resta-nos reiterar que os muitos outros autores abordados por José Enes na presente coleção de textos lhe não inspiram um tão elevado grau do que ele mesmo designa como “exame da hermenêutica e teorização literárias da [sua] obra poética e [do seu] pensamento estético”. Podemos, porém, reafirmar que em todos esses ensaios o Professor Enes nos demonstra as suas capacidades de rigor analítico no escrutínio de processos de realização artística bem como nos juízos valorativo que sobre eles emite. As qualidades de crítico acutilante, dono de um espírito analítico profundo e de uma alargada visão do mundo e da literatura refletem-se nos vários escritos sobre figuras hoje quase esquecidas na conversação literária açoriana, como é o caso de poetas como Ruy Galvão de Carvalho, Vasconcelos César e Jacinto Soares de Albergaria.

Para além desses, não podemos deixar de salientar o diálogo com Eduíno de Jesus sobre a natureza da poesia, que parte da afinação de conceitos teóricos chave e acaba incidindo na sua aplicação à poesia do próprio Eduíno de Jesus. São páginas reveladoras de como a poética de José Enes estava bem longe de constituir um interesse meramente lateral. Profundamente interessado na linguagem como lugar de acesso ao Ser, a sua dimensão estética na vertente literária não foi nunca por ele relegada para um plano secundário – como já ficara patente nos seus estudos da poética nemesiana.

Um outro ensaio de grande fôlego que esta nota introdutória não pode deixar de relevar é o estudo inovador sobre o poeta-filósofo Manuel Joaquim Dias, elaborado contra o pano de fundo da Horta do seu tempo, na época um notável foco de atividade literária. O texto, além de uma profunda análise da obra do poeta, constitui importante contributo para o conhecimento do universo cultural da pequena cidade faialense, numa altura em que se revelou particularmente aberta ao mundo das letras. Só um crítico com a formação filosófica de José Enes poderia identificar e enquadrar devidamente este poeta no ideário subjacente à sua poesia.

Definitivamente inovador e fora-de-série é o ensaio “Gaspar Frutuoso – Alegoria e história”. Aqui, o filósofo, crítico literário e estudioso da res azorica congrega todos os seus talentos numa penetrante e até aqui nunca por ninguém elaborada análise da clássica obra Saudades do Céu, de Gaspar Frutuoso, o verdadeiro pater fundador da açorianidade. Não é por esse caminho que se infiltra a análise de José Enes, que aliás abre com uma inovadora análise literária de Saudades da Terra, mas o ensaio é uma espécie de confronto tête-à-tête entre duas figuras liminares da história cultural açoriana. O último texto da primeira parte deste conjunto de ensaios, sobre Ernesto do Canto, é outro testemunho da paixão açoriana de José Enes. À frente do CERIE (Centro de Relações Internacionais e Estratégia), procurou sempre enquadrar no meio-milénio de história açoriana, desde o início entreposto de ligações intercontinentais, a vocação histórica dos Açores para ser um espaço natural de cruzamentos de rotas transatlânticas.

Como atrás foi já referido, a segunda parte do volume compõe-se de curtas recensões de José Enes de obras sobretudo literárias. Lidas à luz dos ensaios da primeira parte do livro, essas curtas peças ganham uma significativa força demonstrativa do título do presente volume – Açores no coração. Desde Nemésio, nenhum autor açoriano centrou tanto como José Enes a sua obra nas ilhas de berço vistas como um todo. Ressalvadas as devidas diferenças (Nemésio enveredou primordialmente pela literatura), os dois autores constituem figuras paradigmáticas na história cultural açoriana.

O nosso papel de prefaciadores do volume e colaboradores na sua revisão foi relativamente fácil de desempenhar. Todo o trabalho de busca, recolha, transcrição e organização dos escritos que compõem o presente volume são devidas ao denodado esforço, ao entusiasmo, à dedicação e ao abnegado empenho da Professora Maria Fernanda Enes. Ela seria, aliás, de longe a pessoa mais indicada para escrever este prefácio. Quis, porém, que fôssemos nós. Temos, todavia, uma fundamentada suspeita de que nos terá solicitado o desempenho desta tarefa por supor que, se fosse ela a fazer metade sequer das afirmações atrás por nós feitas, o leitor suspeitaria tratar-se de enviesada leitura, pelo facto de se tratar de escritos do seu amado e saudoso companheiro de vida. Mas a verdade deve ser dita: o mérito da organização deste livro pertence exclusivamente a Maria Fernanda Enes.

Leonor Simas-Almeida

Onésimo Teotónio Almeida

Providence, Rhode Island

26 de março de 2024

Prefácio do livro de José Enes, Acores no Coração, ensaios publicados pelas Letras Lavadas,2024


[1] José Enes, Obra Poética. Ponta Delgada: Letras Lavadas, 2018.

Leave a comment