Aos Cem Anos, por Jorge Bettencourt

ASSIM SE PERDEU UM MARINHEIRO AVIADOR

Jorge Martins Bettencourt
Junho 2024

Durante a infância em Inhambane, o menino passou muitos domingos no Aeroclube a brincar e a ver o Pai[1] subir e descer nos ares naquelas máquinas de tela e metal, sempre a tentar a aterragem perfeita. Os aviões do Aeroclube faziam parte do seu imaginário infantil, não tanto o tristonho “Filipito”, um Piper Vagabond baptizado com o diminutivo do filho do governador, tiques do poder colonial, mas muito o reluzente Chipmunk. Para o menino, o mundo mágico dos aviões era acima de tudo o Chipmunk e só depois as duas ou três avionetas.

Sabia também que o Pai saía nas avionetas para ir trabalhar. E principalmente sabia que a Mãe ficava muito feliz e ele voltava a ter o colo paterno, quando, no regresso, uma daquelas avionetas sobrevoava a baía de Inhambane e acenava com as asas, antes de seguir para o campo de aviação.

Mas nem sempre as coisas corriam bem. Uma tarde, terminado o trabalho no campo experimental que instalou na Malamba, o Pai iniciou o procedimento de preparação da avioneta. Feitas todas as verificações, pediu ao regente agrícola que rodasse a hélice, mas o motor da avioneta não pegou. Novas verificações, novas insistências, mas o motor teimava em não responder.

Quando finalmente e depois de muitas tentativas, o motor resolveu trabalhar, tinha-se tornado tarde para a viagem de regresso. A alternativa era voar na manhã seguinte, mas não tinha forma de avisar quem o esperava no destino. Por isso, após um momento de reflexão, fez-se à pista e levantou voo, confiante que seria poupado à lei de Murphy.

Mas enganou-se redondamente. Ao fim de pouco tempo de voo solitário, levantou-se um vento que contrariava o avanço do avião e que quase o parava quando a rajada era mais forte. O tempo foi passando com o combustível a esgotar-se e o Pai do menino percebeu que não iria alcançar a cidade antes do anoitecer. Era um problema sério porque nem o avião tinha faróis nem a pista de aterragem tinha iluminação.

Contornou a larga baía para manter as referências no terreno, não sobrevoou a casa nem acenou como de costume e dirigiu-se logo para o campo de aviação. Ficou, no entanto, muito admirado ao ver uma fila de faróis de carros a deslocarem-se na mesma direcção. Soube depois que era uma cadeia de ajuda organizada por um amigo, alertado pela Mãe do menino quando viu a noite cair sem sinais da avioneta do marido.

E assim alcançou o campo de aviação com a gasolina no zero, mas com a pista iluminada pelos faróis dos carros, uns ao lado dos outros. Como não sabia a que altura estava do solo, mas tinha uma ideia aproximada da altura do hangar, passou rente ao topo do telhado e fez-se à pista. Quando estimou que estava perto do solo, deixou a avioneta cair em perda.

O embate com o solo foi violento, muito diferente da suavidade domingueira, mas não houve prejuízos. O problema mais sério foi acalmar a Mãe do menino quando chegou a casa.

No entanto, este e outros episódios tiveram consequências no futuro do menino. Quando um dia mais tarde, já adolescente, pensou tirar o brevet, a Mãe foi peremptória:

– Nem penses nisso, para sustos já me chegou o teu pai!

E assim se perdeu um potencial marinheiro aviador.


[1] Aníbal Jardim Bettencourt, nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo, Moçambique, em 6 de Junho de 1924. Casado com Maria da Conceição Martins Bettencourt, tiveram dois filhos, seis netos e doze bisnetos. Engenheiro agrónomo e doutor em Agronomia pelo Instituto Superior de Agronomia, de Lisboa, aposentou-se em 1992 depois de uma longa e intensa carreira profissional. Faleceu em 16 de Setembro de 2015, em Cascais.

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