Sobre Lady Bobs, o seu Irmão e Eu: Um Romance dos Açores de Jean Chamblin por Victor Rui Dores

“E tudo isto tem a ver com a chuva que caiu em torrentes e com a humidade que se impregnou na minha alma” (pág. 67).

Os Açores são muito mais do que 9 ilhas e 19 concelhos. Acertadamente costuma dizer o escritor João de Melo: “Venho às ilhas, não para ver paisagens, mas para sentir atmosferas”.

Com efeito, nestas ilhas, há muito mais paisagem para além do Caldeirão do Corvo; do Poço da Alagoinha, nas Flores; da Caldeira do Faial; da montanha do Pico; das fajãs de São Jorge; da Furna do Enxofre da Graciosa; do Algar do Carvão na Terceira; da Lagoa das Sete Cidades, em São Miguel; e da Baía de São Lourenço, em Santa Maria.

Os Açores são muito mais do que o seu anticiclone e do que a sua importância geoestratégica. Território avançado de Portugal, fronteira mais ocidental da Europa e charneira entre esta e o mundo atlântico, os Açores são, hoje, um espaço de cultura, de ciência e biodiversidade. E é precisamente aqui que, em tempo de massificação e globalização, podemos marcar a diferença. A diferença de viver em ilhas. Com tudo o que isto tem de positivo e menos positivo.

Sentiu essa diferença a atriz norte-americana Jean Chamblin (1876-1950), que, em 1902, visitou o arquipélago açoriano. Dessa viagem resultou o livro que agora me chega às mãos: Lady Bobs, o seu Irmão e Eu: Um Romance dos Açores (Letras Lavadas, 2024), tradução de Lady Bobs, Her Brother and I: a Romance of the Azores, por Manuel Menezes de Sequeira.

Estamos perante uma narrativa de viagem romanceada, inicialmente publicada em série na revista “The Critic” (1902) e posteriormente em livro (1905), tinha então Jean Chamblin 29 anos de idade.

A obra, que recebeu recensões muito favoráveis (inclusive no The New York Times), dá conta de uma viagem Nova Iorque/Açores/Nova Iorque empreendida pela autora a bordo do navio Dona Maria, sabendo-se que, entre abril e julho de 1902, ela visitou as ilhas de São Miguel (onde terá permanecido mais tempo, pois esta ilha ocupa a maior parte do livro em termos de narração), Terceira e Faial, com passagem por São Jorge. E estamos perante o resultado de impressões do vivido e do sentido, ou seja, do registo de quanto a observação da sua autora-narradora (Kate) pôde detetar no contacto direto com as referidas ilhas, gentes, tradições e costumes.

Através de um conjunto de 13 cartas endereçadas a uma amiga, Nora, e com 13 fotografias a ilustrar a narrativa, Jean Chamblin dá-nos um retrato muito significativo da sociedade micaelense dos inícios do século XX. Descobre que estas ilhas são mais literárias do que turísticas, ela que dos Açores nada sabia e quando zarpou de Nova Iorque, julgava mesmo que ia viajar para os trópicos…

Observadora atenta da paisagem humana e física das ilhas, tudo a impressiona: o isolamento das ilhas e o modo de vida pacato das suas gentes; a instabilidade do clima açoriano; o carácter e temperamento dos açorianos; os homens no amanho das terras; as lavadeiras exercendo a sua função nas pedras das ribeiras; o traje feminino do capote e capelo azul-escuro; as burricadas (com episódios burlescos); as vacas dóceis e mansas; as camponesas a tecer cestos, a remendar roupa e a descascar o milho; os escaleres que fazem  serviço aos navios em dias de mar agitado; a seriedade das procissões; a beleza dos interiores das igrejas; as crianças pobres “tão numerosas quanto as galinhas” (pág. 127)…

O livro dá também conta das relações que a narradora estabelece com os estrangeiros com quem na ilha se cruza: Lady Bob, George (por quem se toma de amores), a família DeGrey-Streeters, Victoria, as gémeas Alexandra e Maude, Tom, oficial da marinha, o Dr. Morgan… Mais distante é o relacionamento que mantém com gente das classes mais desfavorecidas, ela que está sempre a contas com “a desconfortável sensação de ser olhada pelos camponeses”…

Impressionante é ainda a maneira como a autora descreve as suas “excursões”, recheadas de peripécias, por recantos da ilha de São Miguel, nomeadamente às Sete Cidades e às Furnas através dos (bucólicos) meios de transporte: carruagens, carros de bois, cavalos e mulas. Aqui e ali uma pitada de humor, sobretudo quando a autora estabelece diferenças culturais entre a sua condição de americana despreocupada, em nítido contraste com a arrogância e impertinência da inglesa Lady Bobs. O que para uma é expectativa e deslumbramento, para a outra é descontentamento e tédio…

Guardemos, no escaparate e no coração, Lady Bobs, o seu Irmão e Eu: Um Romance dos Açores, o primeiro e único livro de Jean Chamblin, cuja consagração se verificaria no teatro. Um romance epistolar muito belo, eivado de apetecível impressionismo literário. E saibamos o que é, verdadeiramente, escrever com os olhos da memória.

Victor Rui Dores

P. S. – Coloquei Lady Bobs, o seu Irmão e Eu: Um Romance dos Açores ao lado das obras de alguns conhecidos viajantes que, no século XIX, sulcaram os mares açorianos e visitaram as ilhas. Por exemplo: o médico norte-americano John Webster, A description of the island of St. Michael (1820); o capitão inglês Boid, A Description of the Azores, or Western Islands from personal observation (1832); os irmãos ingleses Joseph e Henry Bullar, nesse livro espantoso que dá pelo nome de Um Inverno nos Açores e um Verão no Vale das Furnas (1838); o zoólogo francês Henri Drouet, Catalogue de la Flore des îles Açores précédé d´intinéraire d´um voyage dans cet archipel (1857); o naturalista Alberto I, príncipe do Mónaco, La Carriére d´un Navigateur (1879); o oficial sueco jean Gustave Hebbe, Descrição das ilhas dos Açores (1880); a jornalista norte-americana Alice Baker, A Summer in the Azores with a glimpse of Madeira (1882.

Mas também junto de algumas obras de referência do século XX, como, por exemplo, As Ilhas Desconhecidas (1926), de Raul Brandão; Mês de Sonho (1926), de Leite de Vasconcelos; Terras de Maravilha (1928), de Oldemiro César; Primavera nas Ilhas (1935), de Hugo Rocha; Corsário das Ilhas (1955), de Vitorino Nemésio; Mulher de Porto Pim (1983), de Antonio Tabucchi; Açores/Azores (1987), de Maurício Abreu e Álamo Oliveira; Azoren, noch fast unbekannte Inseln um Atlantik (1991), de Bernt Eichhorn e Dieter Zingel; Os Açores, o paraíso desconhecido (1991), de Diogénia Bettencourt Lima e Daniel Luc Godard; Açores vistos do céu (1998), de Filipe Jorge e António Valdemar; Açores, o segredo das ilhas (2000), de João de Melo; Açores (2003), de Daniel de Sá, Javier Grau e Undine von Rönn; Açores/Azores, As Ilhas Ocidentais The Western Islands (2004), de Karl-Heinz Raach e Victor Rui Dores; Açores, ilhas de sonho (2010), de Carmo Rodeia e José António Rodrigues; Açores a preto e branco (2017), de Sérgio Ávila e Victor Rui Dores; Crónicas da Atlântida (2018), de Luís Campos; Açores, o poema da luz (2023), de Sérgio Ávila e Sidónio Bettencourt.

A plataforma Filamentos (artes e letras na diáspora açoriana) tem o apoio da Luso-American Education Foundation.

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