Belas e bíblicas são as narrativas de Álamo Oliveira

“Adão e Eva (…). É preciso não esquecer que Jeová apenas criou um casal de maus atores” (pág. 31).

“As mulheres bonitas do Antigo Testamento não eram de castidade fiável” (pág.98).

Prodigiosa é a mestria, a desenvoltura e a imaginação criadora de Álamo Oliveira que, desligado de modas, tertúlias e grupos literários, continua a escrever, do Raminho para o Mundo, em busca do que há de insondável na alma humana.

Num relacionamento de vaivém entre ficção narrativa e o percurso do vivido, neste autor a escrita é sempre um lugar de confronto e de resistência: de denúncia às verdades ilusórias e de renúncia às máscaras de um quotidiano alienante.

Com efeito, em toda a obra alamiana há um discurso literário que lança olhares sobre os mitos do passado recente, do presente incerto e do futuro de bruma, isto é, a questionação, crítica, céptica e não poucas vezes perversa do real. O seu mais recente livro é disso um bom exemplo: Os belos seios da serpente (Vale das Amoras, 2024). No registo de uma escrita alegórica, a obra é atravessada por um sopro bíblico, ou seja, por um vento profético e evangélico, não fosse Álamo Oliveira um profundo conhecedor dos textos sagrados, com ênfase para o Cântico dos Cânticos, que pontua o início de cada capítulo do livro.

Muitas das mitologias cristãs estão aqui plasmadas, o que, de alguma forma, vem dar continuidade a um outro romance de Álamo, Marta de Jesus, a verdadeira (Letras lavadas, 2014), sem esquecer o que na poesia ele já havia experimentado em Os Quinze Misteriosos Mistérios (ed. de autor, 1976). Recorde-se que, num outro registo – o dramático – Norberto Ávila (1936-2022) já havia trilhado semelhantes caminhos com Os Doze Mandamentos (D.R.A.C./ S.R.E.C.,1994) e A paixão segundo João Mateus (I.A.C., 2011), onde também as referências bíblicas têm implicações diretas nos dias de hoje.

Em Os belos seios da serpente temos, como protagonista, o velho açoriano Eliseu dos Anjos, emigrante regressado dos E.U.A., pai de dois filhos, viúvo e “escritor de contos bíblicos”, personagem atrás do qual se esconde Álamo Oliveira para criticar e subverter, quase sempre de forma humorística, os textos sagrados. E fá-lo através de porfiadas (re)leituras, (re)interpretações e (re)criações de episódios ligados sobretudo ao Antigo Testamento, convertendo-os para os tempos atuais.

Nesta matéria, as figuras bíblicas Adão e Eva, Abel e Caim, José e Maria, Noé e Moisés, Eliseu e Elias, Sansão e Dalila, David e Golias, Saul e Jónatas, Jonas e Daniel, Salomão e Jeremias, Isaque e Esaú, Jacob e Rebeca, Ester e Judite, entre outras, terão correspondência com gente contemporânea. E são Impressionantes as bem conseguidas elipses e analepses (“flashbacks”, para utilizar linguagem cinematográfica) deste romance com desfechos imprevistos e imprevisíveis: a Torre de Babel e as Torres Gémeas de Nova Iorque; a largada de feras no Coliseu de Roma e as touradas de corda na ilha Terceira; a Terra Prometida do leite e do mel e as bem-aventuranças dos E.U.A. e da União Europeia; o reino de Sabá e a riqueza do Dubai; as pragas do Egipto e os sismos nos Açores; as maçãs do Éden apanhadas na freguesia dos Biscoitos; Judite e Marilyn Monroe; David e Elvis Presley; Holofernes e John Kennedy; as praias de Nínive e Las Vegas, a “cidade do pecado”; as batalhas bíblicas e os atuais conflitos que opõem Ucrânia/ Rússia, Israel/Hamas, etc.

Os belos seios da serpente tem, como leitmotiv, a queda da humanidade por intermédio da tentação da serpente, com tudo o que isso tem de simbólico. As sedutoras Eva, Ester, Judite, Rute, rainha de Sabá e Dalila (com “olhos de Mata-Hari europeia”) dão expressão e conteúdo ao pecado original.

De resto, as preocupações temáticas de Álamo Oliveira com as questões da Igreja Católica, da fé e dos seus contrários constituem a grande metafísica dialética da sua ficção, ele que é marcado e moldado pelos estudos que fez no Seminário de Angra. E porque é homem do palco, sabe criar teatralidade e emprestar ambientes cénicos à narrativa do livro em análise: por exemplo, a descrição da tenda onde Judite vai seduzir e decapitar o general Holofernes, como forma de libertar o povo hebreu.

Por conseguinte, a tensão interior entre literatura e religiosidade inflama, ainda e sempre, o imaginário de Álamo, escritor transgressivo e transgressor e sempre muito atento ao contencioso social e político das ilhas, de Portugal e do Mundo. Mas atenção:  se a escrita deste terceirense por vezes se ancora no texto bíblico, nunca o faz para o parafrasear, mas para sobre ele produzir um discurso eminentemente irónico e ideológico – o que está bem patente em Os belos seios da serpente.

Livro de Álamo Oliveira na livraria Letras Lavadas em Ponta Delgada

Enganou-se redondamente Todorov (o formalista russo e meu suado pesadelo na Faculdade de Letras de Lisboa) ao referir que “toda a personagem é um ser no papel”. Para mim, a personagem será sempre, e tão-somente, uma criação do autor para lhes insuflar sentimentos, emoções e estados de alma.

Álamo Oliveira, recorrendo a uma extraordinária pormenorização, a uma linguagem densa de valores poéticos, à elaboração de uma atmosfera mágica, à utilização de uma imagística sedutora e de um ritmo original, dá-nos, neste livro, um belíssimo retrato sobre a condição humana no teatro do mundo. E, ao fazê-lo, escreve contra o esquecimento, ele que é um autor que engrandece e dá luzimento à literatura portuguesa.

                                                                                                        

 Victor Rui Dores

Poeta, Romancista, Dramaturgo e Ensaísta

Reportagem da VITEC sobre o lançamento do livro de Álamo Oliveira.

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