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«Literatura»
«Há muitos anos que me interrogo sobre
a vocação literária de cada um de nós
(…)
( ……………………………………. )Como
se nos piores momentos a morada da poesia
fosse o silêncio que rompe a noite num ah,
há que agir, que falar, que pensar.
(…) “(P.442)
“Camião do lixo”
“Estive a ver o medo, estive a observá-lo
Com legendas. Mesmo assim
Os cabelos em pé, o coração na desordem
De medos que acordam medos
Mais escondidos, mais perto do cinema.
(…)
(……………….) Mas eis que chega a hora
De recolher à porta de tua casa
Os restos de um dia sempre cão » (P.268)
Como se Baudelaire anunciasse esta escrita que tanto dialoga com os poemas em prosa de As Flores do Mal e que acontece também na esteira do imagismo: uma imagem clara, sem qualquer artifício, o que coloca o poeta em frente de um espelho onde se vê através da imagem da realidade: « A idade da poesia cedo nos abandona. / A prosa, pelo contrário, vai-se tornando imperfeita /…» (P.414) Ou seja, o sujeito poético, expulso do paraíso, atirado para o estado do mundo árido, caótico, fora dos campos, das fontes de água, dos rios, dos mares, da frescura das árvores , encontra-se num estado interior de queda humana tão profunda que não consegue rememorar senão a realidade kafkiana que o circunda, que o envolve e que o esmaga em agonia, em dor, em desamor, em solidão, em isolamento. Importa não esquecer que o mundo saído da Revolução Industrial , que abriu graves crises sociais, além do mundo que saiu da Primeira Guerra Mundial, a Waste Land de Eliot, constituíram um alerta para os artistas. O modernismo e os movimentos modernistas não nasceram do nada: nasceram da ruptura. Há , por isso, um alerta nestes autores, na esteira dos quais situo Carlos Bessa. Esse alerta é potenciador de um rasgão com a poesia lugar do belo e de transfiguração da palavra (« Chego à janela com palavras românticas/O mar é um azulejo, fecho-a./As lágrimas, que porra, as lágrimas /…/ (P.49): o poeta sai à rua para afirmar-se como um crítico , um denunciador do estado do mundo e apenas uma imagem clara, sem qualquer distorção da realidade, pode merecer a atenção do leitor e despertá-lo. Despertá-lo para quê? Para o monstro que criámos e onde vivemos, absolutamente cercados. Absolutamente exilados, tal como o sujeito poético destes livros reunidos. ( «Um poeta nunca se contenta com o que tem./Inventa, põe azul onde apenas há vermelho./Pelo menos um poeta crente , que ainda vive/as tantas patranhas da arte do século vinte.Prefiro quantos, no desassossego de compreender, /cuidam de passar a realidade a limpo e demolhar/ o corpo na tinta turva do que late./Ou os que exploram, com ou sem apetrechos , todo o imenso luxo do quotidiano,/mesmo quando ele é falho e estropiado,/ Sim, sabe-me bem partilhar a malha tantas vezes/ apertada onde ficam os resíduos , os desperdícios./todas as ilusões e promessas que varrem/diariamente a cidade/…/…»(P.518) Assim se explica que estes «livros reunidos» nos tragam todas as palavras que mais tememos e que mais nos despertam: a maca, o hospital, a metástase, o lixo (uma imagem fortíssima), o medo, o ódio, o rancor, ,a solidão, a morte, nada fica por dizer, nenhuma palavra é interditada. Ou seja, o sórdido baudelairiano é um convidado subtextual desta escrita crua e escatológica ( «A vida, essa sujidade como papel/químico,/ que deixa nos dedos a comichão/ da escrita…/» …) P.342) , que denuncia todos os muros de silêncio, onde se erguem as horas que estão escritas nas margens dos alfabetos e nas margens dos dicionários, onde os cheiros nauseabundos, as mordomias compradas com o dinheiro fácil, a fome, o vazio, o caos, a podridão, o sofrimento atroz e os caminhos da e para a morte se instalam e onde caminham todas as solidões e todos os vazios de quem diariamente cumpre o ritual urbano de «um dia cão», de ser o «lixo» que chega a casa.
Esta recriação imagética é profundamente visual: cria-se um espaço cénico para o poema, cumprindo assim o propósito de apresentar a realidade tal como ela é: Um colchão no chão, ao lado da velha mesa de ferro./As portadas abertas para a engelhada e atlântica/ /Toalha azul e no ar a humidade e a canícula/De enlaçados corpos nus. A roupa por ali, inútil,/…»(P. 478) Toda a recriação cénica, através da descrição minuciosa das coisas, dos lugares, de todos os detalhes, tem como objectivo centrar a atenção do leitor no quotidiano que o envolve.
Nestes «livros reunidos», conseguimos encontrar todos vocábulos áridos que diariamente evitamos, talvez porque evitamos o confronto com a vida tal como ela é , e tomamos consciência do nosso lugar fora do paraíso onde guardámos a essência: carregadores da tremenda pedra de Sísifo: subindo e descendo, fazendo e desfazendo, avançando e recuando, voando e rastejando, amando e odiando, libertando e acorrentando, vivendo e morrendo, ganhando e perdendo, somos todos, sem excepção, herdeiros , portadores e exímios praticantes do síndrome da queda, onde se alojam as palavras destes quase trinta anos ( 1995-2017) da obra de Carlos Bessa. Muitos Parabéns!
Ângela de Almeida, poeta e investigadora
Fotos da Livraria SOLMAR onde a obra foi lançada em Ponta Delgada
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