Sobre a “Janela de Matisse”de Ângela de Almeida…um magnífico texto do poeta, ficcionista e tradutor, João Pedro Porto

Farei agora uma viagem por este livro (A Janela de Matisse, N9na Poesia, 2024). Se disser algo que não se entenda, por favor ouçam-no como se ouve o chamariz, o assovio, o canto, o pio dos pássaros. Fingindo entender, talvez entendendo como entende o inconsciente comum e subliminar, o mais antigo, aquele que partilhámos no bando original, na murmuração inaugural. Se ouvirem uma frase que vos atinja no conjunto dos órgãos que nos compõem o coração poético, ouçam-na sabendo que é deste livro, e que a ordem com que vos atinge é também a ordem por que figura na página. Não será coincidência que este livro abra com uma frase de Horácio. Também Horácio se dirigia aos Homens aconselhando-os como um pai. E assim o faz Ângela de Almeida, na posição de mãe. Horácio tanto o fez que cunhou frases tão populares que se entrosaram no nosso discurso diário, como por exemplo “juntar o útil ao agradável”; o que se aplicará muito bem à leitura d’ A Janela de Matisse, pois esse objecto que nos abre e fecha ao mundo é, por si mesmo, útil e agradável. Logo a seguir a Horácio, Camões, lírico, apontando sempre para o futuro. Outra ligação notória e semiótica com a nossa poeta, que tudo sente como um diapasão encostado à condição humana, ao mar da nossa biografia, à memória do que fomos; ao jardim que cresce lá fora, esperando. O martírio dos crisântemos, das chamas que escapam às últimas árvores, do rosto pousando antes do que a janela anuncia; da praia derramada em sangue, não é senão o nosso martírio conjunto como espécie que habita o mundo e que, assim, se habita entre si. É raro, quase impossível encontrar nas vozes poéticas actuais, uma frase com a luminosidade de: como se subitamente uma floresta de sal na boca me ditasse o caminho oculto até à pedra. Cada poema de Ângela de Almeida funciona como a própria luz. A luz é por si mesma iluminada e ilumina com o toque das suas ondas, não díspares das ondas do grande mar em que para sempre ruma o navio da poeta. Regressar e ancorar junto às suas linhas é fazer um regresso emocionado do dia claro à confissão do adeus, como se um abalo tombasse no ponteiro da ilusão. Ah, o sonho e o tempo. Esses temas tão bachelardianos quanto o próprio fogo – também ele presente, da frágua à flama -, levantados daqueles livros filosóficos sobre o sonho e o ar, sobre a psicanálise do elemento ardente, levantados como se levantam os pássaros em todas as páginas de Ângela de Almeida. O que tenho entre mim e Ângela de Almeida? Temos pássaros entre nós. Todos os 500 bilhões de pássaros do mundo nos falam, e nessa língua viva dizem-nos o que depois as gentes chamam de poesia. É deles a poesia. E nós vivemos desse empréstimo. Mas ninguém a ouve, ninguém a entende tão bem quanto Ângela de Almeida, talvez ela mesma pássaro já, voando sobre o olhar heróico de Aquiles, sobre o alegre castigo de Sísifo. Voando sobre nós todos que seguimos adiados, que seguimos alados, invertidos no sol caído na boca, com nomes como véspera, verso, naufrágio, escalando searas de sal, guiados pela mãe das horas, pela mãe dos abalos, das ervas, dos abrigos, das sílabas, dos oráculos. Ah, esse futuro feito na íngreme paisagem da sede, aquele deitado pousado na corda do violino. E pendurado nos olhos de uma andorinha. Sim, temos pássaros entre nós, teremos sempre pássaros entre nós, Mestre. Eu realmente não sou o mar, pois confesso-me sobrevivido, ainda que transformado pelo repetido naufrágio da comoção, feito na ancoragem a este livro; feito no regresso sempre possível à sua luz maior.

Texto de João Pedro Porto

O Portuguese Beyond Borders Institute da Universidade do Estado da Califórnia em Fresno, congratula a poeta Ângela de Almeida por mais esta obra. Agradecmos todo o trablho que tem prestado para a Cátedra Nat’laia Correia nesta universidade. Parabéns!

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