Madalena Férin revisitada

2023 ficará marcado como o ano de Madalena Férin (1929-2010), já que as publicações, coincidentes, de dois livros vieram resgatar do esquecimento esta escritora: Violinos ocultos sob a relva, poesia reunida (1957-2003), Instituto Açoriano de Cultura), com organização e introdução de Ângela de Almeida; e É preciso romper o amanhã – Madalena Férin revisitada (Companhia das Ilhas), coordenado por Vasco Medeiros Rosa, com vistosa capa que reproduz retrato de Madalena Férin da autoria de Victor Câmara.

É sobre esta segunda obra que aqui me proponho lançar alguns olhares, não sem antes tecer algumas breves considerações sobre o seu autor.

Vasco Medeiros Rosa é a afirmação inequívoca de uma verdadeira vocação de pesquisador literário. Estamos na presença de um ensaísta que, bem documentado e informado, dá ao que escreve tratamento criterioso e meticuloso, ele que possui a capacidade de informar, esclarecer, decifrar e avaliar, incorporando nos seus trabalhos as metodologias dos mais diversos ramos da investigação literária. Acima de tudo, ele é um “arqueólogo literário” paciente e fecundo, frequentador assíduo de bibliotecas e arquivos. Sempre o conheci atulhado de livros, jornais, revistas, relatórios, folhetos, opúsculos e outras fontes manuscritas e impressas. Ou seja, este estudioso faz pesquisa in situ – e não dos que a fazem por encomenda nem à distância, como certos professores universitários que eu cá sei…

Também editor, Vasco Medeiros Rosa é um especialista em Raúl Brandão, e quero aqui realçar os seus livros A pedra ainda espera dar flor. Dispersos 1891-1939 (Editora Quetzal, 2013), Cinzento e dourado – Raul Brandão em foco nos 150 anos do seu nascimento (Imprensa Nacional, 2017) e Raul Brandão e os AçoresMotivo, edição e recepção de As Ilhas Desconhecidas. Notas e paisagens, de 1927 (Companhia das Ilhas, 2019). Este último resulta de um vigoroso relatório de pesquisa que aquele estudioso efetuou entre 2017-2018, lançando, por um lado, novos olhares sobre a viagem de Brandão ao arquipélago açoriano em 1924, e, por outro, fazendo uma abordagem, sem precedentes a nível regional e nacional, sobre a difusão e receção crítica de As Ilhas Desconhecidas, escrito em 1926 e publicado em 1927.

Num tempo em que se contam pelos dedos de uma mão os brandonianos deste país, e numa altura em que, lamentavelmente, os investigadores literários são muito pouco valorizados entre nós, é de realçar a pesquisa contínua e continuada de Vasco Medeiros Rosa.

Para além de se debruçar sobre outros autores nacionais, Vasco Rosa efetua, neste momento, estudos sobre o açoriano Pedro da Silveira, cujo espólio o tem surpreendido bastante, dada a vasta colaboração do autor florentino dispersa em periódicos, revistas e opúsculos, sendo imensos os inéditos que aguardam e terão em breve a devida publicação.

É preciso romper o amanhã – Madalena Férin revisitada reúne dados biográficos e arquivo literário sobre Madalena Férin. O objetivo é resgatar do esquecimento esta escritora nascida na ilha de São Miguel (Vila Franca do Campo), mas levada, menina e moça, para Santa Maria, ilha de seu pai. Tendo ali vivido até 1958, fixou-se em Lisboa. De 1965 a 1975 esteve em Faro, onde concluiu estudos secundários. Licenciou-se em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e foi Técnica Superior do Instituto de Meteorologia e Geofísica nessa cidade.

Maria Madalena Velho Arruda Monteiro da Câmara Pereira Férin pertenceu a uma família que marcou as letras e as artes a nível regional e nacional: era neta do médico e historiador Manuel Monteiro Velho Arruda (1873-1950), e filha do poeta neo-romântico Armando Monteiro da Câmara Pereira (1898-1974), e teve como irmãos Fernando Monteiro (engenheiro), Armando Monteiro (filósofo e poeta), Jacinto Monteiro (sacerdote e historiador), José Nuno da Câmara Pereira (1937-2018), artista plástico de projeção nacional e internacional. Desde muito jovem, teve a coragem de pugnar a favor dos princípios e valores democráticos. A sua ficção narrativa reflete, de forma muito clara, as suas preocupações na defesa da Liberdade.

Aos 27 anos de idade publicou o primeiro livro, com o título Poemas (Coimbra editora, 1957) e remeteu-se, durante quase duas décadas, ao silencio, voltando à poesia em 1984 com o livro Meia-noite no mar (Instituto Histórico de Ponta Delgada), a que se seguiram outras publicações: A cidade vegetal e outros poemas (DRAC/SREC, 1987), O anjo fálico (DRAC/SREC, 1990), Pão e absinto (Espaço XX1, D.L., 1998), Prelúdio para o dia perfeito (Salamandra, 1999), Quarteto a solo, de que é co-autora (2000), e Um escorpião coroado de açucenas (Hugin Editores, 2003) – títulos agora reunidos no já mencionado livro Violinos ocultos sob a relva.

Representada em várias antologias poéticas e tendo obtido alguns prémios literários pelo meio, Madalena Férin dedicou-se também à ficção, tendo publicado quatro títulos: O número dos vivos (Instituto Açoriano de Cultura, 1990), Bem-vindos ao caos (Salamandra, 1996), Dormir com um fauno (Salamandra, 1998) e Africa Annes: o nome em vão (Salamandra, 2001).

Com Sophia de Mello Breyner Andresen e Maria Natália Duarte Silva colaborou na programação da coleção juvenil “Nosso Mundo”, para a qual traduziu alguns textos, especialmente contos. Entre 1981 e 1993, colaborou com as revistas Ocidente e Revista de Portugal.

Privei de perto com Madalena Férin nos anos 80/90 do século passado, aquando da realização dos Encontros de Escritores na Maia, ilha de São Miguel, promovidos pele escritor Daniel de Sá, e recenseei alguns dos seus livros. Como na altura eu me encontrava em fase de iniciação poética, dela recebi sábios conselhos, um dos quais nunca esqueci: “Não estragues a poesia com palavras, mas com ideias”…

O que não deixa de ser estranho, porque se há coisa que aprecio na poesia de Madalena Férin é precisamente a ambiguidade esplendorosa dos seus poemas, o ritmo das suas palavras, as pulsações e as sonoridades dos seus versos. Prova provada que a poesia não tem outro fim senão ela mesma. Ao leitor caberá descortinar o lado de lá da neblina do verso. Para que, assim, aconteça a fruição do texto (“le plaisir du texte”, nas palavras de Roland Barthes).

Estamos perante uma poética da intimidade e da exaltação dos sentidos. Dos sentidos do corpo da mulher em toda a sua secreta plenitude. Da mulher (genesíaca) enquanto portadora do fogo e enquanto anunciadora dos sinais e dos mistérios da vida e da morte, no sentido em que a mulher é princípio e fim de todas as coisas.

Partindo de uma lírica amorosa para inquietações de ordem existencialista e metafísica, sempre me atraiu, na poesia encantatória de Madalena Férin, a procura (erótica) do amor, do sonho e da felicidade, por um lado e, por outro, o universo simbólico: imaginário mitológico, sopro bíblico, busca de uma unidade cósmica. Onde verdadeiramente as ideias abundam é, sem dúvida, na sua ficção narrativa, ela que, atentíssima observadora do real, dissecou a sua vida (a sua alma), como Vernet agarrado ao mastro do navio para estudar a tempestade… Refiro-me aos retroativos da memória: o espaço sagrado e iniciático da ilha, a infância enquanto paraíso irremediavelmente perdido, as desilusões e os desenganos da vida, a grandeza trágica das paixões, as viagens interiores, as reflexões sobre a efemeridade da existência humana, a questionação do destino do Homem no palco do mundo.

O que é imperativo é que a poesia de Madalena Férin seja estudada nas universidades e nas escolas secundárias. Darei o meu contributo para que tal aconteça, na minha dupla condição de leitor amante de poesia e de membro da Comissão Científica do Plano Regional de Leitura.

Não cairei na esparrela de aqui questionar a existência, ou não, de uma escrita feminina por oposição a uma escrita masculina. Devo dizer que não tenho tempo nem pachorra para estéreis discussões académicas. Longe vai o tempo em que o intelectual Eduardo Prado Coelho lançava picardias à escrita “assumidamente uterina” das escritoras Natália Correia, Maria Velho da Costa, Isabel Barreno e Lídia Jorge. Longe vai o tempo em que Agustina Bessa-Luís era acusada de fazer crochet com a escrita. E muito longe vai o tempo em que Maria Teresa Horta, escritora assumidamente feminista, acusava António Lobo Antunes de ter “uma escrita macha, marialva e grosseira”.

Para mim, é ponto assente que não há escritas femininas nem escritas masculinas – o que há são bons e maus escritores, boas e más escritas, bons e maus livros. No fundo, o que faz a grandeza da literatura é caberem nela todas as paixões do homem e da mulher.

Admito, no entanto, a existência de uma criatividade especificamente feminina (o que nada tem a ver com escrita feminina) – criatividade essa que foi, ao longo dos séculos, esmagada, amordaçada, aniquilada dentro de cada mulher, por motivos vários e de diversas formas, sendo um dos piores o colonialismo cultural sobre ela exercida pelo homem. Isto é, o homem desde sempre assumido como o pater familias, o patrão, o dono da criatividade e da cultura: o rei de uma selva onde só ele ditava leis e normas, segundo os seus próprios critérios.

Só a partir dos finais do século XIX é que as mulheres começam a reivindicar direitos e a lutar pela sua emancipação. Até aos dias de hoje. E tendo conquistado, com avanços e recuos, os mesmos direitos do homem e de estar, perante a lei, em pé de igualdade com ele, elas encontraram a sua expressão própria, a sua própria criatividade. Isto é, uma criatividade como forma de encontro com as raízes femininas. Digo, uma outra sensibilidade, uma escrita do corpo, se quiserem. Aprendi isto nos bancos do Liceu ao ler os sonetos de Florbela Espanca. Mais tarde, ao ler autoras como Virginia Woolf, Simone de Beauvoir, Chantal Chawaf, Anaïs Nin, Susan Sontag, entre outras, convenci-me da existência de uma verdadeira criatividade feminina.

Madalena Férin poderá ser integrada nesta linha de raciocínio, ela que, não sendo feminista, foi sempre uma mulher livre, irreverente e insubmissa, incómoda e incomodada, inconformada e insatisfeita. ,

É precisamente sobre a vida, a poesia e a prosa de Madalena Férin que dá conta o livro É preciso romper o amanhã – Madalena Férin revisitada, através da receção crítica da sua obra e de testemunhos de uma vasta galeria de autores: Álamo Oliveira, Amândio César, Ana Cristina Correia Gil, António Ferreira Monteiro, Armando Côrtes-Rodrigues, Eduíno de Jesus, Fernando Mendonça, Félix Rodrigues, Irene Amaral, Jaime Brasil, João Afonso, João Rui Mendonça, José Enes, José de Almeida Pavão, José Henrique Borges Martins, Maria Estela Guedes, Rebelo de Bettencourt, Ruy Galvão de Carvalho, Urbano Bettencourt e o autor destas linhas.

No capítulo Dispersos, chamo a atenção para o belíssimo texto “Imagens da Grécia”, publicado em 1958, resultado de uma viagem que Madalena Férin empreendeu àquele país. Contemplativa e impressionista, a autora dá-nos uma descrição minuciosa de tudo o que, por mar e por terra, viu e sentiu nessa viagem, deslumbrada que ficou com as cidades e aldeias, templos, monumentos, palácios, mosteiros, museus, anfiteatros, jardins e outros lugares visitados. Ao percorrer esses lugares, ela vai evocando eventos históricos e emitindo juízos sobre a Antiguidade Clássica. Deste modo, capta – e bem – o imaginário helénico, analisando as raízes da civilização grega. E fica deveras fascinada com Atenas, Delfos, Creta e Corinto e as suas gentes. Eis uma narrativa digna de figurar em qualquer antologia de literatura de viagens.

Para terminar, faço minhas as palavras de Vasco Medeiros Rosa na Explicação deste livro: “Há que juntar, tão cedo quanto possível, um volume com a Prosa Reunida de Madalena Férin”, para que esta escritora, de inegável qualidade, possa ser lida e entendida como merece.

Victor Rui Dores, poeta

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