NATAL DAS SOMBRAS por João Carlos Abreu (Madeira)



Mãe, vamos brincar
de braço dado,
criando a ilusão da vida
que já não existe!
Vamos porque é Natal
e à meia-noite em ponto,
vai nascer nas ruas deste Funchal
na prisão e nos bairros feitos
de trapos, pedras e cartão.
Vai nascer, Mãe, aqui mesmo
neste hotel, nas águas quentes da Ribeira,
nas furnas do Lazareto, no Albergue
dos Velhinhos, à meia-noite em ponto,
em toda a parte onde a terra respirar,
vai nascer, Mãe, um menino,
com o nome de António, Manuel ou José,
para ser acarinhado, chicoteado,
ou aqui mesmo ser julgado
no Tribunal da Cidade.
Vem, Mãe, porque as bolas
de soprar, uma a uma,
vão encher-se de luz
e de estrelas cintilantes,
iluminando na escuridão
o teu rosto que há anos
que não encontro!
Nesta noite de Natal
convidei também o pai,
como desiludido está!
Meu Deus!
O pai, também, não chegou?!

Vamos todos discutir
pintar de castanho o papel
e contornar de algodão
as montanhas fictícias
com pastores, ovelhas e um guardião.
A canja aquecida,
o cacau mais bem temperado,
os bolos de mel na mesa,
quando for a meia-noite,
na chaminé da lareira,
os sapatos ficam cheios
de coisas que tu inventas!
Mãe, o ponteiro está nas vinte e quatro.
Vinte e quatro!
Tantos anos passámos juntos!
É possível, tu não estás?!
É Natal, mãe!
As searas cresceram. Os sinos estão
a tocar.
É Natal na cidade: há pessoas que
se beijam.
É Natal! É Natal!
Ele é feito de saudade.

Leave a comment