Conto do Natal – ÉRAMOS SETE

Quando eu tinha sete anos, e um pouco menos de altura, éramos sete. Quando eu não sabia contar, nem dar legendas às coisas, também éramos sete. Quando eu tinha a medida incerta dos sonhos, assim, como alguém que não sabe dosear as suas próprias emoções, éramos sete.

Éramos sete: e quando as coisas corriam menos bem, também éramos sete. Éramos sete: e quando as coisas se faziam a passos largos, para um destino incerto e inconsequente, éramos sete. Éramos sete quando nos juntávamos à volta da mesa; sete quando chegávamos ao momento de abrir os embrulhos de Natal; sete quando nos íamos embora, cada qual para as suas casas.

Éramos sete: e quando as coisas não saiam como queríamos, éramos sempre sete; quando havia uma discussão mais acesa, sete. E quando saboreávamos, e enquanto cortávamos, o bacalhau cozido, éramos sete.

Entretanto alterou-se, hoje, a numerologia das ocasiões; mas éramos sete, é certo, e agora sou apenas eu mesmo. Sou um, e eu já estou crescido, e talvez, por já estar crescido, me aperceba, como nunca, de que já não somos sete, mas um.

A mesa, antes cheia de doçaria e de comida, de gastronomia e de bebida, já não tem sete copos, sete pratos, sete guardanapos. Tem um.

Éramos sete, e eu lembro-me bem que sermos sete à mesma mesa era uma grande alegria prévia de preparação; as conversas, e a maneira quase artificial de sorrir, a maneira como discutíamos todos os assuntos de forma acesa e grave Éramos sete, e eu recordo-me, tão bem, de que o Natal fazia todo o sentido na minha cabeça. Éramos sete, e eu recordo-me, como se fosse ontem, que a minha Avó fazia sempre os mesmos doces, os mesmos bolos, na mesma maneira, de sempre, de fazer os mesmos doces e os mesmos bolos. Éramos sete, e eu lembro-me tão bem do meu Avô, e da sua maneira de nos mandar embora para ir descansar, quando se fazia tarde. Éramos sete, e eu quase que adivinho, ainda, a maneira especial como tirávamos, delicadamente, as postas de bacalhau da travessa; com a batata cozida a fumegar; e o sumo a entornar nos copos de vidro usados vezes sem conta.

Éramos sete. E eu sou ainda capaz, ao longe, de sentir os tilintar dos copos; a maneira severa e grave como garfávamos o peixe. Ainda sinto, mas bem perto, a forma crespa da noite e a televisão aberta transmitindo o habitual, e clássico, “Circo de Natal”.

Ainda sou capaz de entender bem, como se fosse hoje, a forma mais expressa e doseada das emoções. Ainda sou capaz de entender bem, como se fosse hoje, a maneira mais segura e certa de estar à mesa. Sem quaisquer etiquetas, sou, hoje, ainda capaz de sentir o cheiro a comida quente. E, claro, éramos sete: sete à volta da mesma mesa.

Éramos sete, todos da mesma altura e com os mesmos problemas. Vivíamos para estar, não para ser. Éramos sete e esse número era redondo; era perfeito. Éramos sete, e o Natal era sempre mais do que um mero número, até porque o número era satisfatório, e não pensávamos muito nisso.

Mas hoje sou apenas eu. Somente eu; somente um. Serei só eu a estar à mesa, pendente num sonho de sete, de ainda sete, comendo a mesma comida, as mesmas sobremesas e bebendo da mesmíssima água.

Pela primeira vez, em mais de vinte anos, serei só eu: só eu a estar à mesa, só eu a saborear o prato principal. E, fundo com os meus próprios pensamentos, serei apenas eu mesmo a abrir os presentes – de mim para mim mesmo.

Éramos sete, mas sempre foi sobre mim, e sobre cada um de nós, o tempo todo. Éramos sete, mas sempre fora uma maneira, outra maneira, de encontro comigo mesmo. Éramos sete, mas sempre estive, agora que entendo bem, tão sozinho. Éramos sete, sim, mas cada qual na sua pequena ilha. Éramos sete, sim, mas cada um na sua ponta; e, agora que me recordo melhor, calávamos imensas vezes o que tínhamos para dizer (com medo de magoar, ferir ou ofender o outro). Havia uma estranha forma de censura. Éramos sete, mas ninguém era ele mesmo.

Éramos sete, e uma mesa cheia de corações vazios: a verdade é que, sendo esse número tão perfeito, a imperfeição era uma constante. Ou caía um pedaço de comida no chão ou, mais grave ainda, ninguém se sentia, autentica e verdadeiramente, em paz – e feliz. Sobretudo, consigo mesmo.

Éramos sete. Lembro-me tão bem que quando nos íamos embora não havia uma maneira de ficarmos. Éramos sete e lembro-me tão bem que, quando chegávamos, não havia uma maneira de nos irmos embora. E isso doía e magoava bem fundo dentro de nós., embora não o disséssemos nunca.

Hoje, só sou eu. Numa mesa pouco maior do que uma mesa de cabeceira, só sou eu. E, acreditem, há mais Natal aqui, hoje, agora, do que há muitos anos, quando éramos sete numa mesa enorme, larga e comprida.

Hoje, somente eu faço honras a mim próprio e corto a posta do peixe; e encho o copo de água e bebo fundo dentro de mim. Hoje, só somente eu mesmo acredito que o Natal é o que nós quisermos dele. O que nós fizermos dele. A antiga mesa, onde cabiam sete pessoas, vai encher-se, hoje, de seis pessoas, das mesmas seis pessoas, na mesma casa, que outrora me acompanharam num clima perfeita e tipicamente natalício.

E quanto a mim, vivo só com uma certeza: ficarei de fora.

Júlio Tavares Oliveira, poeta

Conto de Natal, 2023

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