
“Poesia, minha amante” (pág. 43).
A caminho dos 96 anos de idade e com 70 de carreira literária, Eduíno de Jesus, micaelense dos Arrifes e açoriano do mundo, continua igual a si próprio: agudo e arguto observador da realidade, homem da cultura e da finura, minucioso e reflexivo, bem formado e informado, intelectual gentil, generoso e fraterno, autor do pensamento vigilante e de uma ironia requintadíssima que só pode ser sinal de inteligência e sabedoria.
Poeta perfeccionista de agudíssima sensibilidade e apreciáveis recursos sensoriais, ensaísta igualmente exigente e de primeiríssima água – dos que se escusam a modas e traficâncias e escrevem sem pressas e sem ânsias editoriais. Também crítico literário e de artes plásticas, conferencista, prefaciador, autor teatral, interlocutor precioso e amabilíssimo, dele acabo de ler o livro Como tenuíssima espuma de luz – Poética Fragmentária (Nona Poesia, 2021).

Poética fragmentária e poemas de circunstância. Mas por mais que alguns façam crer o contrário, tenho para mim que todos os poemas são de circunstância. É só preciso que as circunstâncias sejam as do poeta: a circunstância exterior deve coincidir com a circunstância interior, como se o poeta a tivesse produzido.
Nesta ordem de ideias, é de circunstância o referido livro de Eduíno de Jesus. Livro de circunstância porque forjado à luz da observação do real, do vivido e do sentido, num jogo do mítico e do simbólico. Pesquisador subtil de realidades visíveis e invisíveis, o autor envereda por uma poética da intimidade, da sensualidade, da expressão amorosa e da contemplação erótica, a que os desenhos de Artur Bual dão força e expressão. Esta intimidade, esta “poesia do corpo” não é mais do que a relação que o sujeito estabelece com a sua escrita: é a sua atitude (vigilante) em relação às palavras, a sua maneira de as acolher e de as convocar, de as surpreender e de se surpreender com elas. Os poemas “Gaia ciência”, “Artesania poética” e “As palavras” são disso um bom exemplo.
Por conseguinte, herdeiro assumido da tradição oral, Eduíno de Jesus escreve afetos, emoções e sentimentos reabilitando a palavra poética e o sentido mágico do poema. E fala sobre as encruzilhadas da vida e sobre mitologias do quotidiano. E, com mestria, busca o silêncio que há nas palavras. E tudo isto através de versos certeiros e harmoniosos. Porque a sua poesia é isso mesmo: a busca de um silêncio e de uma harmonia em tempo de muitos ruídos e de múltiplas dissonâncias.
Ao escrever poesia, Eduíno de Jesus mantém uma relação com o tecido literário, poético, cultural e civilizacional que a precede. E, na minha opinião, é aqui que está o selo da modernidade da sua poesia (há mais de meio século que ele é apelidado de “poeta modernista”…). Por isso, esta é uma poesia de todos os tempos e de todos os lugares.
Este sentido de modernidade está na maneira hábil como Eduíno soube e sabe situar-se entre uma tradição literária e poética e uma renovação dessa mesma modernidade. É óbvio que alguns dos seus poemas denotam algum (neo)romantismo, mas Eduíno de Jesus está longe de ser um poeta romântico. Ele esteve por dentro das vanguardas literárias e artísticas, é dado a experimentações linguísticas, mas não é autor de ruturas nem de transgressões. É certo que bebeu fundo da fonte do Simbolismo, havendo quem o considere um dos mais significativos poetas simbolistas da “geração de 50” do século transato. E, no entanto, ele não é propriamente um simbolista “puro e duro”, nem tão pouco enveredou por um “simbolismo insular”, à maneira de Roberto de Mesquita. Apesar de uma ou outra influência, o Surrealismo e o Concretismo passam de raspão na sua poesia, onde nem tão pouco se vislumbram ressonâncias da “Presença” ou do Neo-Realismo (a arte social versus arte pura passam-lhe de largo).
Para mim Eduíno de Jesus é tão somente um imenso poeta. Isto é, um incansável trabalhador (artesão) da palavra. Um poeta lírico sui generis, profundamente humano, que observa o real e disseca a sua vida (a sua alma?) – como Vernet agarrado ao mastro do navio para estudar a tempestade…
Perante o enigma do real, o poeta dirige a sua atenção (nua e pura) não só para dizer o que o seu olhar vê, mas também para ordenar e exprimir (recriar) o caos interior, a vertigem do inumerável e do inexprimível. Daí que ele parta em busca do indizível.
Apreendendo a lição de Paul Verlaine (a musicalidade da palavra), Eduíno encontrou a sua própria voz, a sua linguagem, a sua “petite musique”. Por isso escreve com esmero técnico, apurado sentido estético e grande sensibilidade artística. Por isso os seus versos são de boa ressonância musical, prenhes de poeticidade e de sedutora prosódia. Ou seja, são envolventes e fascinantes e de grande beleza plástica e visual.
A propósito do que acima vem exposto, recomendo vivamente a leitura de Os Silos do Silêncio – Poesia (1948-2004), Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005, livro que reúne a maior parte da poética de Eduíno e que é fundamental para quem quiser saber um pouco mais sobre o destino da vida humana no teatro do mundo.

Urge que, agora, ele (ou alguém por ele) recolha, para publicação imediata, o muito material ensaístico que tem inédito, mas que o seu grau de excessiva exigência e perfecionismo não deixa vir cá para fora…
Até lá, longa vida ao Eduíno de Jesus.
Este magnífico texto do poeta Victor Rui Dores será publicado em inglês, tradução de katharine baker, na edição sétima edição digital da FILAMENTOS, já no próximo mês de Dezembro.

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