Estou aqui a recordar-te na distância deste tempo
Meu corpo é um continente que te compreende mesmo na ausência
M. C.
In Na distância deste tempo
Quem sabe qual é a relação que a vida mantém com a poesia? Deve ser misterioso esse saber, mesmo quando o poeta dá ao seu poema o dom interventivo que as palavras têm e revelam. E isso também porque a poesia não é apenas o bordado estético de uma ideia que se abastece de abstrações, mas, sobretudo, uma força capaz de movimentar e de modificar as consciências e de acender, no fundo do túnel, a luz orientadora da própria vida.

É bom pensar que a poesia é mesmo assim, embora não se possam evitar refutações que parecem contradizê-la no que tem de apelo mais direto e social. A sua irreverência não teme afrontamentos dialéticos nem formais, mesmo quando não se quer reconhecer, na juventude, a maturidade enobrecida pelo seu olhar luminoso.
Em Por ter escrito amor, a poesia é clarividente e tem a inocência como estado primordial. Os poemas que enformam este livro (num total de 21) apresentam-nos um poeta com 19 anos de idade, mas com um entendimento da vida que, desde logo, surpreende o leitor. Marcolino Candeias de seu nome, natural de Cinco Ribeiras (Terceira), transforma cada poema numa bofetada assertiva sobre quem pretende atingir, ousando desafiar a falsa intocabilidade de poderes instituídos, sacralizados na sua demonização. Esta persistência de querer mudar a sociedade através da poesia, utilizando-a como moça que se precisa «de muito bom arranjo/ com pensar de formiga/ e olhos de anjo/ que seja uma pena/ ou/ a ferramenta de um operário», deu ao poeta Marcolino Candeias a escrita denominada coragem e a ferramenta que lhe permite construir a solidariedade necessária para que o Mundo não se hostilize a si próprio e se antropofagie recorrendo ao seu ainda perturbador estado de primata.
«É obrigatório ser criança», escreveu Marcolino Candeias no poema «Quotidianamente operário», como quem se esforça em trabalhos complementares, porque todos necessários e urgentes e todos precisando de cuidados, como o jardim, a neblina, a harmonia, o amor. Melhor do que ninguém, ele disse: «O poeta// está sentado à beira da fonte/ e com as mãos em concha/ bebe a poesia». Não morrerá de sede. Porém, quem sabe qual a relação que a vida mantém com a poesia? É preciso não esquecer que ele esteve «de castigo toda a manhã/ por ter escrito AMOR/ no tampo da carteira».

Talvez, por isso, só em 1984 Marcolino Candeias volta a publicar um outro livro de poesia – Na distância deste tempo. A sua vida profissional, após o bacharelato em Filologia Românica e a licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas, na Universidade de Coimbra, foi preenchida como professor estagiário no ensino secundário, assistente nas universidades dos Açores e de Coimbra, Leitor de Língua, Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira na Universidade de Montreal. Regressou aos Açores, tendo sido Diretor da Casa de Cultura e Juventude de Angra do Heroísmo, Diretor Regional da Cultura, Presidente do Gabinete da Zona Classificada de Angra do Heroísmo e Diretor da Biblioteca e Arquivo da Ilha Terceira. Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiras e é autor de estórias orais sob o registo de um emigrante terceirense regressado da Califórnia, de nome Joe Canoa.
Na derradeira edição de Na distância deste tempo (Salamandra, 2002), lê-se, na folha de rosto, que se trata de uma «2ª edição revista». A primeira data de 1984 (col. Gaivota, SREC). A revisão feita por Marcolino Candeias é particularmente notada pela supressão de dois poemas: «Pequenos navios carregados de esperança» e «Nesopatia» – poema que tematiza o sismo de 1980 e que provoca uma leitura de susto e espanto; e a inclusão de dois inéditos: «Aqui não tem sabiá» (saboroso poema de amor dedicado a Deka Purim, sua companheira para sempre) e «Breve discurso aos meus amigos» – manifesto político-social que denuncia, em sucessivas evocações e contradições dos tempos e dos lugares, o desencanto por um mundo que vem a desabar estrondosamente, perante a indiferença dos que incubaram «novas suásticas/ sob a asa da nossa inconsciência.» É também a denúncia da perversidade que conspurca a ciência sob «a computação do bolso e do laser». É ainda o longo discurso do «breve discurso» que nos remete para a desnecessidade da alma, já que nos tornámos «humanos e imortais». Marcolino Candeias, com a irónica sabedoria do seu discurso poético, deixa, com este poema, um sorriso amarelo no rosto do leitor.

Em Na distância deste tempo, Marcolino Candeias dá continuidade ao seu livro anterior, insistindo em mostrar as suas muitas preocupações sociais, as quais parecem depender de um fenómeno de desmemoriação e do desentendimento da Humanidade, esta cada vez mais apostada em transformar a prepotência em estado insanamente global. O poeta parte do singular para o universal, sabendo que a «distância» é também uma forma de dominar o «tempo», pois, «se no fim faltar o cais para a chegada/ o mar também é terra onde morar».
A poesia de Marcolino Candeias tem inovações linguísticas apuradas do léxico popular açoriano, como no poema «Novas da Ilha», onde se enaltece, pela propriedade de linguagem, um punhado de dizeres recuperado do discurso corrente e utilizado num contexto que não se acomoda à fronteira dos regionalismos. Referir aqui que a universalidade é um conceito que ainda aguarda uma definição totalmente consensual, é também consentir na existência de uma poesia que se integra numa babel profundamente sentimental, que vai deixar-se inteligenciar na Língua «do mar da Serreta ou do mar das Cinco?», propondo uma meditação sobre os diversos entendimentos de viagem. E assim interrogado, o mar fica, nesta poesia, como entrada para partidas e chegadas, como carcereiro e administrador da liberdade, como pastor de sonhos e de outras minudências inomináveis.
Marcolino Candeias, como caçador de imagens, tem, no poema «Ode a Angra minha cidade em tom de elegia», uma síntese exemplar sobre o uso do método descritivo que desagua numa poética inimitável. A cidade não é apenas fotografada. É radiografada por uma conjunção de metáforas – metáforas que se movem nas ruas da cidade; que entram nas casas, subindo escadas que dão para o piso duma aristocracia faz-de-conta; que procuram, nas lojas de comércio a retalho, os panos que prezam a nudez da pobreza; que dão de comer e de beber a clientes de ocasião; que escondem os pecadilhos das traições possíveis e efémeras; que hão de assoprar o fumo dos cigarros dos mangas de alpaca das chatas repartições públicas. É uma comovente declaração de amor, feita num só verso de apelo patriótico: «Oh Angra cidade única e minha».

Homem solidário e lutador das grandes causas sociais, Marcolino Candeias é poeta de uma escrita ampla e profunda, desenhador de aspirações e inspirações criativas. Os seus poemas, oficinados até à perfeição, constituem a síntese da sua própria vida – vida que partilhou não só com os que lhe eram mais chegados, mas, sobretudo, com os desamados da sorte e do infortúnio. Por isso, continua-se sem saber qual é a relação que a vida mantém com a poesia.
Marcolino Candeias faleceu no dia 1 de maio de 2016, na qualidade de operário da Poesia. Agora, «sentado sobre a terra/ o poeta é o hóspede/ que está em sua casa».
Bibliografia utilizada:
CANDEIAS, Marcolino – Por ter escrito amor, ed. autor, Angra do Heroísmo, 1971
– Na distância deste tempo (1ª edição), ed. SREC, Angra do
Heroísmo, 1984; (2ª edição revista), Edições Salamandra,
Lisboa, 2002




