Relendo Prosa às Quartas

Diz-se, decerto com algum fundamento, que ninguém é bom juiz em causa própria. No entanto, atrevo-me a ajuizar Prosas às Quartas e faço-o porque, como já tive oportunidade de afirmar na Nota Introdutória à obra, mais do que qualquer outro papel, tive o de “descobrir” as cinco autoras representadas neste livro, sem ter interferido significativamente nos textos que elas produziram. Assim sendo, após reler o livro já dele algo afastada, o possível, dei-me conta de que a minha aposta nestas cinco mulheres foi acertada, sendo para mim motivo de orgulho tê-las “descoberto”.

Como também já tive oportunidade de expor na Nota Introdutória que abre a obra, o que se me afigura mais interessante e valioso em Prosas às Quartas é a diversidade de estilos e de temáticas das cinco autoras, Carla Couto, Isabel Silva, Margarida Viveiros, Sofia Estrela e Vera Cymbron. O livro, com a honrosa chancela das Letras Lavadas, é composto por vinte textos, quatro de cada autora, escolhidos de entre os vários que elas produziram nas sessões do Curso de Escrita Criativa por mim dinamizado, textos esses também diversos entre si, ou seja, cada autora revela, em cada um dos quatro textos, várias facetas de si mesma enquanto “manejante” da língua portuguesa e criadora de literatura.

No que a Carla Couto diz respeito, os seus textos mostram um seguro domínio da palavra e da arte de efabular. Ela urde os seus textos entre a estabilidade clássica e a inovação linguística, conferindo, não raras vezes, um cunho lírico ao que escreve. No primeiro texto, “Pequenos Nadas”, somos arrastados por uma descrição tocada de ternura para chegarmos ao valor que pode ter um Menino Jesus deitado numa concha “vinda de um mar longínquo”. No segundo texto, “Flores de Papel”, ainda de teor basicamente descritivo e marcadamente lírico, seguimos o olhar de uma mulher que “sente” a beleza de um jardim e com ele se encanta, encantando-nos também. Os outros dois textos, uma narrativa curta (“Strawberry Fields”) e um conto (“Esquecimento”), têm como principais e distintos ingredientes a fluidez dos percursos narrativos, a beleza da linguagem, onde não faltam “toques” líricos, a criatividade na construção de situações e a solidez na captação de sentimentos humanos.

Passando a Isabel Silva, direi que é uma autora que nos surpreende a cada passo, sendo também marca sua o humor, isto para além da segurança no uso da língua. Assim, no primeiro texto, “Ela”, texto curto, mas cuja leitura cria verdadeira expectativa, temos o humor ligado à arte de surpreender. Já no segundo texto, “Adamastor”, deparamo-nos com a descrição de um jardim, numa subtil combinação de poeticidade e de realismo. “A Sandes pacificadora”, por seu turno, é uma narrativa curta onde a comicidade da(s) situação(ões) narrada(s) só emparelha com a habilidade de dar atenção ao pormenor do quotidiano. Por fim, Isabel Silva expressa as suas qualidades de efabulação num conto, “O Menino da Mamã”. Este patenteia um num registo mais sério, embora com “toques” do incontornável humor da autora, sendo rico nos pormenores e surpreendente nas reviravoltas da narração.

Margarida Viveiros destaca-se, sobretudo, pela arte da contenção, pela narrativa despojada e pelo ritmo que imprime às histórias, sem descurar a novidade literária e o uso escorreito da língua. No primeiro e curtíssimo texto, “Koby”, a autora, num estilo que podemos considerar minimalista, apresenta uma situação deveras pungente – a eutanásia do cão –, sem cair em sentimentalismos piegas. Em “O meu Jardim António Borges”, destaca-se, por um lado, a descrição expressiva do jardim, e, por outro, a dialética Margarida nova/Margarida velha, num interessante jogo de alteridade. No terceiro texto, “A Viúva e o Papagaio de Virgínia Wolf”, narrativa curta, num ritmo rápido e sedutor pelas propositadas infrações à língua comum, temos um aliciante exercício de intertextualidade com o texto original de Virgínia Wolf, exercício que revela maturidade literária. O último texto desta autora é, tal como o das outras novéis escritoras, um conto: trata-se de uma narrativa pautada pela “rapidez”, onde os acontecimentos se desdobram em catadupa, cativando o leitor, até a personagem chegar a uma lição de vida: “dali em diante, passaria a viver como se fosse eterna.”

Embora as circunstâncias da produção literária não me pareçam particularmente relevantes para se apreciar os textos, convém dizer que Sofia Estrela é uma jovem estudante que tem apenas dezanove anos. E muitos sonhos, felizmente. Acompanhou as colegas de escrita sem vacilar e revelou o seu valor. Sobre a escrita dela, pode dizer-se, na generalidade, que percorreu dois rumos, o da fantasia e o do realismo, tendo sido bem-sucedida em ambos. O primeiro texto de Sofia Estrela, “A Praia”, une uma expressiva descrição de um lugar (a praia) com “pinceladas” de uma narrativa pungente. O segundo, “As Três Marias” é um exercício de pura fantasia, convocando galáxias, planetas e estrelas e efabulando este mundo para criar um enredo bem urdido. Os outros dois textos, “Catarina” e “Memórias da Minha Terra” são de teor realista. Em “Catarina, a autora consegue, usando a concisão, pôr a nu a condição feminina de uma sociedade onde ainda impera o machismo; no segundo, que tem uma impecável estrutura de conto, encontramos uma narradora angustiada por lhe falhar a criatividade, que chega ao olhar para a janela da casa da vizinha. Estes dois textos revelam uma Sofia Estrela em franco processo de amadurecimento.

Já falar de Vera Cymbron convoca necessariamente palavras/expressões tais força, habilidade, talento, capacidade de moldar a língua. O primeiro texto da autora, “Porto sentido!” é um excelente exercício de, simultaneamente, captação de um espaço e expressão de um “eu”, numa linguagem bela e inovadora. O segundo texto, “Inocente, assim de repente!”, aborda a descrição de um jardim, tal o fizeram Carla Couto, Isabel Silva e Margarida Viveiros, e, tal os textos similares, é servido por uma linguagem muito expressiva, no caso com uma forte presença do “eu”, que dá “espessura” ao espaço. O terceiro texto, “Egoísmo”, apresenta, num arguto e enérgico diálogo, a problemática das relações pais/filhos – e, sub-repticiamente, também a questão da velhice. O quarto texto, “Café das 18:00h”, é um conto onde se cruzam, exemplarmente, dois tempos e duas narradoras, apostando também no “suspense” e trazendo-nos a ternura do amor e a beleza da língua, num ritmo muito adequado e sedutor.

Para terminar, reitero a minha admiração por este livro que vi nascer, sem que isso seja a razão por lhe reconhecer qualidade. É um livro de estreia, sim, mas esse facto não lhe retira mérito: qualquer escritor, por mais reconhecido que seja, um dia foi estreante, e quantas vezes já na estreia se reconhece o mérito – é, sem dúvida, o caso da presente obra e das presentes autoras.

Paula de Sousa Lima

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